Artigo: Ópio do povo? Marxismo crítico e religião, por Michael Löwy
Para além da noção corrente, a abordagem marxista dá conta do caráter contraditório da religião: seu aspecto opressivo e seu potencial de revolta
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Partidários e adversários do marxismo parecem concordar em um ponto: a célebre frase “A religião é o ópio do povo” representa a quintessência da concepção marxista do fenômeno religioso. Contudo, essa fórmula não tem nada de especificamente marxista. Podemos encontrá-la, antes de Marx, com algumas nuances, em Kant, Herder, Feurbach, Bruno Bauer e muitos outros. Peguemos dois exemplos de autores próximos a Marx.
Em seu livro sobre Ludwig Börne, de 1940, Heine se refere ao papel narcótico da religião de maneira positiva – com uma pitada de ironia
“Bendita seja uma religião, que goteja sobre o amargo cálice da humanidade sofredora algumas doces e soporíferas gotas de ópio espiritual, algumas gotas de amor, fé e esperança”.
Moeses Hess, em seus ensaios publicados na Suíça em 1843, adota uma posição mais crítica – mas não livre de ambiguidade:
“A religião pode render suportável… a consciência infeliz da servidão… da mesma forma que o ópio é uma grande ajuda nas doenças dolorosas” 1
A expressão aparece pouco depois no artigo de Marx “Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel” (1844). Uma leitura atenta do parágrafo inteiro mostra que seu pensamento é mais complexo do que poderíamos pensar habitualmente. Na realidade, rejeitado a religião, Marx não toma menos em conta o seu duplo caráter:
“A angústia religiosa é ao mesmo tempo a expressão da verdadeira angústia e a protestação contra essa angústia verdadeira. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, assim como ela é o espírito de uma situação sem espiritualidade. Ela é o ópio do povo”. 2
Uma leitura do ensaio em seu conjunto mostra claramente que o ponto de vista de Marx em 1844 revela mais do neo-hegelianismo de esquerda, que vê na religião a alienação da essência humana, do que da filosofia das Luzes, que a denúncia simplesmente como uma conspiração clerical (o “modelo egípcio”). De fato, no momento em Marx escreve a passagem acima ele era ainda um discípulo de Feuerbach, um neo-hegeliano. Sua análise da religião era então “pré-marxista”, sem referência às classes sociais e um tanto a-histórica. Mas ela não era menos dialética já que ela apreendia o caráter contraditório da “angústia” religiosa: às vezes a legitimação da sociedade existente, às vezes protesto contra ela.
É apenas mais tarde – em particular em “A Ideologia alemã” (1846) – que o estudo propriamente marxista da religião como realidade social e histórica começou.
O elemento central desse novo método de análise dos fatos religiosos é considerá-los – junto com o direito, a moral, a metafísica, as ideias políticas etc. – como uma das múltiplas formas da ideologia, quer dizer, da produção espiritual (gestige Produktion) de um povo, a produção das ideias, representações e formas de consciência, necessariamente condicionada pela produção material e as relações sociais correspondentes.
Poderíamos resumir esse progresso por uma passagem “pragmática” que aparece em um artigo redigido alguns anos mais tarde:
“É claro que toda mudança histórica das condições sociais engendra ao mesmo tempo a mudança das concepções e das representações dos homens e, portanto, de suas representações religiosas”. 3
Esse método de análise macrossocial terá uma influência durável na sociologia das religiões, mesmo para além do movimento marxista.
A partir de 1846, Marx prestara apenas uma pequena atenção à religião enquanto tal, como universo cultural/ideológico específico. Não se encontra em sua obra praticamente nenhum estudo mais desenvolvido de qualquer fenômeno religioso. Convencido de que, como ele afirma a partir do artigo de 1844, a crítica da religião deve se transformar em crítica desse vale de lágrimas e a crítica da teologia em crítica da política, ele parece desviar sua atenção do domínio religioso.
É talvez por causa de sua educação pietista que Friedrich Engels mostrou um interesse bem maior que Marx para os fenômenos religiosos e seu papel histórico – compartilhando, é claro, as opções decididamente materialistas e ateias de seu amigo. Sua principal contribuição à sociologia marxista das religiões é sem dúvida sua análise da relação entre as representações religiosas e as classes sociais. O cristianismo, por exemplo, não aparece mais em seus escritos (como em Feuerbach) como essência a-histórica, mas como uma forma cultural (“ideológica”) que se transforma ao longo da história e como um espaço simbólico, jogo de forças sociais antagônicas.
Graças ao seu método fundado na luta de classes, Engels compreendeu – contrariamente aos filósofos das Luzes – que o conflito entre materialismo e religião não se identifica sempre com aquele entre revolução e reação. Na Inglaterra, por exemplo, no século XVII, o materialismo personificado em Hobbes defendia a monarquia enquanto que as seitas protestantes fizeram da religião sua bandeira na luta revolucionária contra os Stuarts. Da mesma maneira, longe de conceber a Igreja como uma entidade social homogênea, ele esboça uma notável análise demonstrando que em certas conjunturas históricas ela se divide segundo seus componentes de classe. É assim que, à época da Reforma, havia de uma parte o alto clero, cúpula feudal da hierarquia, e de outro o baixo clero, que fornece os ideólogos da Reforma e do movimento camponês revolucionário. 4
Permanecendo materialista, ateu e adversário irreconciliável da religião, Engels compreendia, como o jovem Marx, a dualidade da natureza deste fenômeno: seu papel na legitimação da ordem estabelecida, assim como, em circunstâncias sociais adequadas, seu papel crítico, contestatório e até mesmo revolucionário. Mais ainda, é este segundo aspecto que se encontra no centro da maior parte de seus estudos concretos. Com efeito, ele se debruçou inicialmente sobre o cristianismo primitivo, religião dos pobres, excluídos, condenados, perseguidos e oprimidos. Os primeiros cristãos eram originários das últimas fileiras da sociedade: escravos, libertos privados de seus direitos e pequenos camponeses submersos em dívidas. Engels foi até o ponto de estabelecer um paralelo surpreendente entre o cristianismo primitivo e o socialismo moderno. A diferença essencial entre os dois movimentos residia no fato de que os cristãos primitivos depositavam a libertação no além enquanto que o socialismo a colocava neste mundo. 5
Mas essa diferença é tão bem definida como aparece à primeira vista? Em seu estudo de um segundo grande movimento cristão – a guerra dos camponeses na Alemanha – ela parece perder sua clareza: Thomas Münzer, o teólogo e dirigente dos camponeses revolucionários e dos plebeus heréticos do século XVI queria o estabelecimento imediato do Reino de Deus, o reino milenar dos profetas sobre a terra. Segundo Engels, o Reino de Deus era para Münzer uma sociedade sem diferenças de classe, sem propriedade privada e sem autoridade do Estado independente ou estrangeiro aos membros dessa sociedade. 6
Pela sua análise dos fenômenos religiosos à luz da luta de classes, Engels revelou o potencial contestatório da religião e abriu caminho para uma nova abordagem das relações entre religião e sociedade – distinta, por sua vez, daquela da filosofia das Luzes e daquela do neo-hegelianismo alemão.
A maioria dos estudos marxistas da religião escritos no século XX se limitara a comentar ou desenvolver as ideias esboçadas por Marx e Engels, ou aplica-las a uma realidade particular. É assim, por exemplo, com estudos históricos de Karl Kautsky sobre o cristianismo primitivos, os hereges medievais, Thomas More e Thomas Münzer.
No movimento operário europeu, havia muitos marxistas que eram radicalmente hostis em relação à religião, mas pensavam, ao mesmo tempo, que o combate do ateísmo contra a ideologia religiosa devia estar subordinado às necessidades concretas da luta de classes, que exige a unidade dos trabalhadores que creem em Deus com aqueles que não creem. Mesmo Lênin – que denunciava o tempo todo a religião como um “nevoeiro místico” – insiste em seu artigo de 1905 “O socialismo e a religião” no fato de que o ateísmo não deveria fazer parte do programa do partido porque “a unidade na luta realmente revolucionária da classe oprimida pela criação de um paraíso na terra é mais importante para nós que a unidade da opinião proletária a respeito do paraíso no céu”. 7
Rosa Luxemburgo tinha a mesma opinião, mas ela elaborou uma abordagem diferente e mais flexível. Ainda que ateia, ela atacou menos, em seus escritos, a religião enquanto tal do que a política reacionária da Igreja em nome de sua própria tradição. Em um panfleto de 1905, “A Igreja e o socialismo”, ela afirmou que os socialistas modernos eram mais fieis aos preceitos originais do cristianismo que o clero conservador de hoje. Porque os socialistas disputam por uma ordem social de igualdade, de liberdade e de fraternidade, os padres deveriam acolher favoravelmente o seu movimento caso eles quisessem honestamente aplicar à vida humana o princípio cristão “ame o próximo como a si mesmo”.
Enquanto o clero apoie os ricos, que exploram e oprimem os pobres, eles estarão em contradição explícita com os ensinamentos cristãos: eles não servirão Cristo, mas o bezerro de ouro. Os primeiros Apóstolos do cristianismo eram comunistas apaixonados e os Pais e primeiros Doutores da Igreja (como Basílio, o Grande e João Crisóstomo) denunciavam a injustiça social. Hoje essa causa foi tomada pelo movimento socialista que traz aos pobres o evangelho da fraternidade e da igualdade, e chama o povo a estabelecer sobre a terra o Reino da liberdade e do amor ao próximo. Mais do que engajar uma batalha filosófica em nome do materialismo, Rosa Luxemburgo procura salvar a dimensão social da tradição cristã para transmiti-la ao movimento operário. 8
Na Internacional comunista, quase não se prestava atenção à religião. Um número significativo de cristãos se juntava ao movimento, e um antigo pastor protestante suíço, Jules Humbert-Droz, até se torna nos anos 1920 um dos principais dirigentes do Komintern. À época, a ideia mais difundida entre os marxistas era de que um cristão que se tornava socialista ou comunista abandonaria necessariamente suas crenças religiosas anteriores “anticientíficas” e “idealistas”.
A maravilhosa peça teatral de Bertold Brecht, “A Santa Joana dos Matadouros” (1932), é um bom exemplo desse tipo de abordagem simplista em relação à conversão dos cristãos à luta para a emancipação proletária. Brecht descreve com grande talento o processo que leva Joana, dirigente do Exército de Salvação, a descobrir a verdade sobre a exploração e a injustiça social e a denunciar suas antigas crenças, antes de morrer. Contudo, para ele, é preciso haver uma ruptura absoluta e total entre sua antiga fé cristã e seu novo credo de luta revolucionário. Logo antes de morrer, Joana diz aos seus amigos: “Se um dia alguém vier dizer a vocês que existe um Deus, invisível, é verdade, de quem vocês poderão então esperar a ajuda, bata o crânio dele contra uma pedra até que ele estoure”.
A intuição de Rosa Luxemburgo segundo a qual poder-se-ia lutar pelo socialismo em nome dos verdadeiros valores do cristianismo original se perdeu nesse tipo de perspectiva “materialista” grosseira – e intolerante. De fato, alguns anos depois de Brecht ter escrito tal peça, aparece na França, entre 1936 e 1938, um movimento de cristãos revolucionários que reúne milhares de militantes que apoiam ativamente o movimento operário, em particular sua ala mais radical (os socialistas de esquerda de Marceau Pivert). Sua principal palavra de ordem era: “Somos socialistas porque somos cristãos”…
Entre os dirigentes e pensadores do movimento comunista, Gramsci é provavelmente quem manifestou o maior interesse pelas questões religiosas. É também um dos primeiros marxistas a procurar compreender o papel contemporâneo da Igreja católica e o peso da cultura religiosa nas massas populares. As observações sobre a religião em seus “Cadernos do Cárcere” são fragmentadas, não sistemáticas e alusivas, mas muito perspicazes. Sua crítica afiada e irônica das formas conservadoras da religião – notavelmente a versão jesuíta do catolicismo, que ele detestava alegremente – não o impede de perceber também a dimensão utópica das ideias religiosas.
Os estudos de Gramsci são ricos e estimulantes, mas em última análise, eles não inovam em seu método de aprendizado da religião. Ernst Bloch é o primeiro autor marxista a mudar este quadro teórico – sem abandonar a perspectiva marxista e revolucionária. Em uma abordagem similar a de Engels, ele distingue duas correntes sociais opostas: de um lado, a religião teocrática das igrejas oficiais, ópio do povo, aparelho de mistificação ao serviço dos poderosos; do outro a religião clandestina, subversiva e herética dos Cátaros, dos Hussitas, de Joaquim de Fiore, Thomas Münzer, Franz von Baader, Wilhelm Witling e Liev Tolstói. Em suas forças protestatórias e rebeldes, a religião é um das formas mais significativas da consciência utópica, uma das mais ricas expressões do Princípio da esperança e uma das mais poderosas representações imaginárias do ainda-não-existente. 10
Bloch, como o jovem Marx da famosa citação de 1844, reconhece evidentemente o caráter dúbio do fenômeno religioso, seu aspecto opressivo e seu potencial de revolta. É necessário, para apreender o primeiro, o que ele chama de “a corrente fria do marxismo”: a análise materialista implacável das ideologias, dos ídolos e dos idolatras. Para o segundo, ao contrário, é “a corrente quente do marxismo” que é exigida, para procurar salvaguardar o excedente cultural utópico da religião, sua força crítica e antecipatória.
Marx e Engels pensavam que o papel subversivo da religião era um fenômeno do passado, sem significação para a época da luta de classes moderna. Essa previsão se comprovou justa durante um século – com algumas importantes exceções, notavelmente na França que conheceu os socialistas cristãos dos anos 930, os padres operários dos anos 1940, a esquerda dos sindicatos cristãos (CFTC) nos anos 1950 etc. Mas para compreender o que se passa nos últimos trinta anos na América Latina – a teologia da libertação, os cristãos pelo socialismo – é preciso ter em conta as intuições de Bloch sobre o potencial utópico de certas tradições religiosas.
Notas
1 Essas referências e outras similares são citadas por Helmut Gollwitzer em seu artigo « Marxistische Religionskritik und christicher Glaube », Marxismusstudien, Vierte Folge, J. C. Mohr, Tübingen, 1962, pp. 15-16.
2 In Karl Marx, Friedrich Engles, Sur la religion (SR), Paris, Editions soicales, 1960, pp. 42-77. Ver o originak Die Deutsche Ideologie, Berlin, Dietz Verlag, pp. 22-35. A tradução francesa designa Geistige Produktion por “produção intelectual”, mas isto é inexato.
3 K. Marx, F. Engels, « Compte rendu du livre de G. F. Daumer, La religion de l’ère nouvelle…, 1850, SR, p. 94.
4 F. Engels, Introduction à l’édition anglaise de Socialisme utopique ou scientifique, SR, p. 297-298 et La guerre des paysans, SR, p. 105.
5 F. Engles, Contribution à l’histoire du christianisme primitif in SR, pp. 311-312.
6 F. Engels, La guerre des paysans, in SR, p. 114.
7 V. I. Lénine, Socialism and Religion, 1905, in Collected Works, Moscou, Porgress, 1972, vol. 10, p. 86.
8 R. Luxemburg, Kirche und Sozialismus, 1905, in Internationalismus und Klassenkampf, Neuwied, Luchterhand, 1971, pp. 44-47, 67-75.
9 B. Brecht, Sainte Jeanne des abatoires, Théâtre complet, L’Arche, Paris, 1972, p. 144.
10 Cf. E. Bloch, ‘Le principe espérance ’ (3 vol.), Gallimard, Pars, 1977, e L’Athéisme dans le christianisme, Gallimard, Paris, 1978. A obra de Lucian Goldman representa uma outra tentativa de limpar uma via à renovação do estudo marxista da religião, de inspiração muito diferente de Bloch. Em seu livro Le Dieu caché (1955), ele tenta comparar – sem com isso assimilar uma a outra – a aposta pascaliana na existência de Deus e a aposta marxista na libertação da humanidade… Todas as duas estão fundadas numa fé, numa crença aos valores transindividuais, que não é demonstrável a nível dos julgamentos factuais: Deus no que se refere à religião, a comunidade humana do futuro ao socialismo. O que os separa é certamente o caráter supernatural e supra histórico da transcendência religiosa.
Michael Löwy é sociólogo. É pesquisador emérito do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) na França.
Artigo orginalmente publicado em Contretemps, nº 12, fevereiro de 2005. Tradução de Pedro Micussi para a Revista Movimento.