Artigo: A instituição que a sociedadepaga para ser defendida – por Marcos Rezende

Esse título não é à toa. É uma frase escrita por um policial em estado de comoção depois de ter assistido ao vídeo em que seu colega de profissão, em pleno estado de surto, e que nitidamente precisava de suporte psicológico, é alvejado e morto pelos próprios colegas da corporação.

Carta Capital

Por óbvio, a forma como tem sido desenvolvida a atividade policial precisa ser revisitada. Isso tem sido dito de forma sistemática, há anos, por policiais, por especialistas em segurança pública e também por defensores de direitos humanos.

Ontem, dia 28 de março, véspera no aniversário da cidade de Salvador, no Farol da Barra, as frases proferidas à exaustão pelo policial antes de ser atingido mortalmente pelos colegas de profissão eram as seguintes:

“Comunidade, comunidade, venha testemunhar a honra ou desonra da polícia do Estado da Bahia”.

“A corporação tem muitos policiais corruptos”.

“Precisamos de melhores condições de trabalho”.

Nas redes sociais do policial morto e em postagens mais recentes, ecoavam frases como:

“Eu quero trabalhar com honra, com dignidade, eu não vou mais prender trabalhador, não entrei na polícia para prender pai de família, quero trabalhar com dignidade porque eu sou policial militar da Bahia.”

Anos atrás, o especialista em segurança pública Ricardo Balestreri escreveu um artigo chamado “Direitos Humanos: coisa de polícia”. Nele, Balestreri observa que “o agente de Segurança Pública é, contudo, um cidadão qualificado: emblematiza o Estado, em seu contato mais imediato com a população. Sendo a autoridade mais comumente encontrada tem, portanto, a missão de ser uma espécie de ‘porta voz’ popular do conjunto de autoridades das diversas áreas do poder. Além disso, porta a singular permissão para o uso da força e das armas, no âmbito da lei, o que lhe confere natural e destacada autoridade para a construção social ou para sua devastação”.

Escreve Balestreri também que “o impacto sobre a vida de indivíduos e comunidades, exercido por esse cidadão qualificado, é, pois, sempre um impacto extremado e simbolicamente referencial para o bem ou para o mal-estar da sociedade.”

Revisitar essa concepção após assistir ao vídeo em que o jovem agente de Segurança Pública dispara em direção à viatura e na sequência recebe uma rajada de tiros a ponto de vir a óbito é realmente a confirmação da premissa elencada no artigo de Balestreri. Na noite de ontem, autoridades policiais fizeram a barbárie.

Daí questiono o que tem levado os profissionais da área de Segurança Pública do Estado da Bahia (tendo em vista a tragédia ocorrida na Barra e que causou a morte de um policial alvejado por seus próprios pares) a adotarem posicionamentos que, via de regra, são violentos e letais? Como um policial em estado de confusão mental continua a carregar armas? Com que frequência esse “cidadão qualificado” por ser o “porta voz” armado do Estado é avaliado psicologicamente? Como esses profissionais estão vivendo? Que tipo de gatilho essa profissão tem disparado nessas pessoas? Como a sociedade pode ter confiança nessa instituição? Como as comunidades periféricas e as pessoas pobres, em sua maioria negras, enxergam os trabalhadores da área de Segurança Pública?

Essas questões nos provocam inquietações que, mesmo sem respostas objetivas em um primeiro momento, nos permitem afirmar que temos um modelo de Segurança Pública altamente adoecedor e letal. Foi construído o conceito de que Segurança Pública é coisa de polícia e de que a ostensividade do arsenal bélico é o seu elemento central. E aquilo que é visto também é aquilo que é lembrado, que ganha valor “para o bem ou para o mal-estar da sociedade”.

Quando se tem os portas vozes do Estado de contato mais direto com a população (o que não se significa um contato mais próximo) empunhando armas, a mensagem é de que o ente estatal apresenta uma política que será conduzida a partir deste símbolo. E a finalidade da arma é apresentar um poder opressor que mata no desvio da conduta padrão, seja ela estabelecida por normas vigentes ou por regras socialmente impostas.

Este conjunto de regras e de normas são estabelecidas em todos os espaços, inclusive dentro da instituição Polícia Militar. Cabelo cortado, sem barba, farda impecavelmente passada, coturno ou sapatos lustrados, temor reverencial ao superior hierárquico…

A norma imposta ao Policial Militar é da negação do indivíduo em nome da imagem da disciplina rígida, que tenta demarcar a todo tempo o status de briosa, que tem brio, que é honrada, digna e acima de qualquer suspeita. Sim, isso é adoecedor. Negar-se em nome de um status inalcançável (porque nada é acima de qualquer suspeita) é adoecedor. São muitos(as) homens e mulheres adoecidos(as), armados(as), que portam a voz do Estado, a partir das opressões que lhes são impostas e que também são impostas ao conjunto da sociedade.

É certo que isso impacta na vida desses(as) trabalhadores(as), que, em sua maioria, são cooptados nos bairros periféricos e empobrecidos de todo o país e trabalham para garantir a segurança do patrimônio daqueles que estão entre o 1% mais rico do País e que em geral desprezam essas pessoas que estão a serviço do Estado. Essa classe profissional é desumanizada em cursos de (de)formação nas academias de polícia, depois em locais de trabalho muitas vezes insalubres e vivem sob pressão psicológica cotidiana dos superiores hierárquicos, que, em nome da disciplina, silenciam os reclames desses cidadãos que vivem uma realidade onde o debate dos direitos humanos inexiste.

Como deve ser tornar-se o braço forte e opressor do Estado nas próprias comunidades mais pobres onde nasceram e ainda moram os seus iguais e parentes? Como deve ser servir, direta e indiretamente, ao grande capital (essência da criação do Estado) e, em nome dele, oprimir e disfarçar ser por ele igualmente oprimido?

Muitos(as) que integram a Polícia Militar foram obrigados a escolher entre oprimir e serem oprimidos, sem muitas vezes entender que integram a mesma faixa estreita da sociedade que o Estado, em nome do capital, oprime com a mesma crueldade. Não são as armas, a farda, o cabelo cortado e a cara lisa que vão trazer segurança a uma sociedade (policiais e civis) adoecida pela opressão. Nos sobram armas e viaturas em lugar do cuidado, da atenção psicológica, da distribuição de renda, da moradia digna, da cultura, do lazer, do trabalho digno. Ao final do dia, voltamos para os mesmos lugares, adoecidos, desprezados e com os adjetivos que nos foi colocado pelo capital: polícia, ladrão e cidadão de bem, todos empobrecidos lutando por subsistência.

O grito que ecoou por toda a corporação e sociedade neste caso é o mesmo grito que ecoa por mães da periferia pelos seus filhos (certamente mais uma mãe negra chora por esse jovem negro). E sem sombra de dúvidas escolher o Farol da Barra, típico local de manifestações das tradicionais elites da Bahia e cartão postal da cidade, como cenário para apresentar suas reivindicações para garantia de humanização e direitos demonstra que a sua morte não é tão simbólica e tampouco foi em vão, mas, principalmente, é a metódica e prática repetição por parte do estado de quanto vale a vida, as lutas, reivindicações e sonhos de determinadas classes de trabalhadores, subalternizados e das diversas camadas sociais.

Esse não é um debate qualquer, mas sim uma reflexão central sobre a questão de direitos humanos dos trabalhadores da área de Segurança Pública.

Marcos Rezende é historiador e mestre em Gestão e Desenvolvimento Social pela UFBA, foi conselheiro nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça e é membro da Direção Nacional do Coletivo de Entidades Negras (CEN)

(Texto originalmente publicado no site da Carta Capital)

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