Artigo: Netanyahu, Tarcísio e a resposta do verdadeiro movimento negro, por Ramatis Jacino

A juventude negra no Brasil e os jovens palestinos em Gaza têm como prioridade se manterem vivos

Reprodução Facebook Akhbar Al Aan

Cidade de Gaza

Em 7 de outubro de 2023, o grupo político, militar e fundamentalista islâmico, conhecido como Hamas, perpetrou um ataque contra alvos civis e militares israelenses, matando, em torno de 1.200 pessoas e sequestrando mais de 250. O discurso e as ações desse grupo refletem o desespero dos palestinos, que vivem um verdadeiro apartheid, pois confinados em condições semelhantes às vividas pelos negros nos bantustões, durante o regime racista da África do Sul. A desproporcional resposta do governo de Netanyahu levou à eliminação de mais de 30 palestinos para cada israelense morto, 80% crianças e mulheres.

Em julho de 2023, o policial militar Patrick Bastos Reis foi assassinado na cidade de Guarujá, no litoral paulista, e o crime levou à deflagração, por parte do governo estadual, da Operação Escudo, que terminou com 38 mortes e 630 prisões. Segundo a própria secretaria de Segurança Pública, 61% dos presos não possuíam antecedentes criminais; 72% de quem respondia por algum crime eram relativos a delitos sem violência ou grave ameaça, e 92% dos detidos estavam desarmados.

No início de fevereiro de 2024, na cidade de Santos, também no litoral paulista, Samuel Wesley Cosmo, outro policial militar, foi morto e, graças a câmera corporal, tão atacada por parte da corporação, o homicida pode ser identificado e preso. Esse novo crime levou a outra operação, agora chamada Verão que, até a primeira metade do mês de março já havia matado 47 pessoas e prendido 891.

Essas duas iniciativas levaram à morte 85 pessoas, ou seja, 42 mortos para cada policial assassinado; superando em proporção as ações genocidas de Israel. Além disso, se praticou o encarceramento em massa, que já atingiu a cifra de 1.521 detidos, maximizando a indefensável “política de combate às drogas”, que transformou o Brasil no terceiro país com mais prisioneiros no mundo, sem nenhum impacto na diminuição da criminalidade.

É notório que a imensa maioria dos mortos pelas forças de repressão e encarcerados no Brasil são homens, jovens e negros. Portanto, não surpreende que mais de 80% das vítimas fatais nas duas operações no litoral paulista sejam afrodescendentes, e salta aos olhos as semelhanças com os crimes de guerra praticados pelo Estado sionista de Israel: punição a todos os membros de uma comunidade, sob argumento de perseguição a criminosos; limpeza étnica, pois os alvos preferenciais fazem parte de uma etnia específica; total desprezo às leis e às normas internacionais, como comprova a recente declaração do governador, sobre uma denúncia feita contra ele na ONU por violação dos direitos humanos: “pode ir na ONU, pode ir na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí”. Os objetivos políticos também são semelhantes. Netanyahu promove o massacre do povo palestino como estratégia para se manter no poder, com o discurso de unir o País contra o “inimigo externo”. Tarcísio promove o massacre e hiperencarceramento de jovens negros para agradar os setores mais reacionários e belicistas do país e se colocar como alternativa a Bolsonaro, tornado inelegível e que certamente será preso em breve. É o próprio governador que explicita a semelhança com o pensamento e as ações do sanguinário primeiro-ministro de Israel, ao abandonar suas obrigações como chefe do Executivo do estado e voar para lá – acompanhado de outros extremistas – para apoiar a matança indiscriminada contra os civis palestinos.

Nada substitui os movimentos de massas

De alguns anos para cá o establishment brasileiro mudou substancialmente seu comportamento frente à população negra e passou a pautar a discussão das questões raciais, manifestando-se abertamente contra o racismo. Fundações ligadas a bancos e grandes empresas nacionais e transnacionais financiam ONGs que promovem a igualdade racial, a grande mídia já dá visibilidade para homens e mulheres negras nos telejornais, nas novelas, nos programas de entretenimento e sistematicamente denuncia manifestações racistas. Essa mudança radical no histórico comportamento dessas instituições, que resolveram abandonar o cínico discurso da democracia racial, se dá a partir de dois objetivos principais e tem uma consequência trágica.

O primeiro objetivo é capturar um extraordinário mercado consumidor representado por 55% de uma população de 200 milhões, até então desprezados por pura cegueira ideológica.

O segundo, é que o poder econômico resolveu disputar os corações e mentes em busca de eclipsar o caráter revolucionário e anticapitalista da luta contra o racismo, reeditando o que foi feito com a luta feminista, cujo 8 de março foi transformado numa data comercial, escondendo sua origem na luta das operárias do final do século XIX. Para tanto, utilizam da caridade, do discurso meritocrático e valorizam a ascensão individual em detrimento da coletiva. Se orientam, ainda, pelos seculares projetos dos países do centro do capitalismo/colonialismo: de investir em “novas lideranças” nas periferias do sistema, dando-lhes a tarefa de gerir localmente os interesses dos seus patrões, servirem como intermediários entre estes e a massa de excluídos, administrar e controlar suas demandas. É assim que a estratégia atualizada se orienta pela supervalorização de artistas, atletas e celebridades da internet que, evidentemente, priorizam seus interesses pessoais e estão presos aos contratos com seus empregadores ou financiadores. Estes, assim como as chamadas ONGs negras, estão impedidos de ultrapassar certos limites e se obrigam a reforçar o Sistema, que se mantém intacto e continua praticando a Necropolítica. Tornam-se, portanto, na qualidade de “assimilados”[1] sócios minoritários da manutenção da ordem e servem como “exemplos do êxito do sistema capitalista” que, segundo o discurso veiculado, bastaria promover algumas adequações para atender aos interesses de todos; negros e brancos. Enquanto isso, a grande maioria é mantida à margem, na miséria, sem acesso a trabalho decente, saúde, educação e segurança e vulneráveis à limpeza étnica perene praticada pelo Estado, que em momentos agudos ou segundo os interesses de quem controla seu aparelho, pode atingir dimensões de massacre.

A consequência trágica é que, a mesma mídia que reverbera e demonstra indignação com os ataques racistas sofridos por jogadores de futebol, artistas e até mesmo anônimos, ao pautar as ações da polícia do maior e mais rico estado da Federação, naturaliza a absurda mortalidade e encarceramentos arbitrários que estão ocorrendo. O silêncio das celebridades negras, com presença diária nos meios de comunicação e nas redes sociais, evidencia o seu descompromisso no combate ao racismo. Assim como a omissão de grande parte das ONGs negras, que ostentam discursos radicais contra a política institucional, mas se deixam manietar pelo poder econômico e seus interesses.

Para o movimento negro organizado ainda é atual a frase de Steve Biko, “Estamos por nossa própria conta”, pois não é possível esperar que indivíduos e instituições tão profundamente comprometidas com o capital ousem se insurgir contra a sua faceta mais brutal; a eliminação física daqueles a quem o sistema não apresenta possibilidades de inserção social.

O novo comportamento da mídia, o protagonismo de influenciadores digitais e celebridades, em que pese ter um aspecto positivo no sentido massificar o debate na sociedade, faz parte de um esforço para substituir o movimento negro organizado que não tem amarras com o capital. Ao contrário, enfrenta-o a partir da compreensão da coincidência entre raça e classe no Brasil. E mais, denuncia que ações de massacre da população negra, como as ocorridas em Santos e Guarujá, fazem parte de uma lógica de extermínio das “sobras” pelo Capital, que ocorre de maneira perene desde a transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado no nosso país e toma proporções de massacre em determinados momentos da conjuntura política e econômica.

É compreensível, portanto, que a necessária e contundente resposta não esteja vindo das celebridades televisivas e das ONGs e sim do movimento real das ruas, de massas, organizado e com lideranças escolhidas de maneira legítima pela militância, e não forjadas de maneira artificial como resultado da exposição midiática. A resposta está vindo de Claudio Silva, ouvidor das policiais do estado de São Paulo, liderança que chegou ao cargo com apoio desse movimento e tem enfrentado, quase solitário, a máquina de morte implementada pelo governador. A resposta está vindo das mães negras das comunidades que sofrem a violência estatal diariamente e reclamam justiça para seus filhos, está vindo das religiosas e religiosos de matriz africana, que desde sempre representam seu povo, está vindo da juventude preta que, assim como os jovens palestinos em Gaza, tem como prioridade se manterem vivos.

[1] A expressão é tomada de empréstimo da legislação colonial portuguesa. “Indígenas” eram os africanos não aculturados, sem direitos alguns; “assimilados”, eram os nativos aculturados a quem eram dados alguns direitos e em contrapartida ocupavam espaços médios naquelas sociedades, administrando os interesses dos colonizadores. “Brancos”, eram portugueses ou seus descendentes nascidos na colônia, senhores de todos os direitos.

Ramatis Jacino é doutor em História Econômica pela FFLCH/USP e professor da Universidade Federal do ABC

Artigo publicado originalmente pelo site Brasil 247

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