O antirracismo precisa ser prático e de toda sociedade, por Jônatas Nery

A questão prática/objetiva é que, não basta ter o recorte percentual obrigatório de candidaturas negras, é preciso eleger pessoas negras, com programas de ação antirracista

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Combate ao racismo

A luta antirracista é urgente, necessária e imprescindível a qualquer campo que queira transformar de forma profunda as estruturas da sociedade brasileira. O racismo neste país se constitui como uma das determinações das desigualdades socioeconômicas e sua origem deriva do escravismo moderno. Contudo, esta não é a única explicação para a condição de vida atual das pessoas não brancas. Neste sentido, urge um compromisso prático, objetivo, de todos os setores da sociedade para enfrentar a questão. Desta forma, a proposta aqui é apresentar uma leitura acerca da questão racial que se pauta numa perspectiva materialista da histórica, apresentando a construção da raça e a possibilidade material da sua desconstrução a partir de ações objetivas, capazes de impactar, no curto e no longo prazo, a vida e a realidade dessas pessoas, diferenciando-se de análises que tratam o racismo como elemento a-histórico, essencialista, como se o mesmo não fosse um produto da sociedade capitalista, forjado no seu nascedouro.

A condição de vida das pessoas negras neste país está diretamente ligada ao passado violento e genocida que foi a escravização moderna. Os países europeus – no caso brasileiro, Portugal, – utilizaram um sistema de violência contínua e pujante para dominar e escravizar milhões de pessoas do continente africano. Entretanto, a violência direta, exercida de forma privada e pelo Estado, não se sustentaria caso não houvesse um signo cultural que a validasse. E para isso a religião cristã católica foi, nesse período inicial, o instrumento cultural de legitimação da escravização. A igreja, grosso modo, exerceu papel fundamental nesse processo de legitimação da violência da escravização. Assim, portanto, a religião foi o primeiro veículo de justificação da violência sistemática contra milhões de africanos, durante séculos.

As pessoas negras, como dito acima, não começaram a ser escravizadas porque eram consideradas racialmente inferiores. Na verdade, foi dentro do processo de desenvolvimento do capitalismo – tratado como acumulação primitiva do capital –, que os estereótipos começaram a ser construídos. A escravização através do mecanismo objetivo e sistemático da violência buscou ininterruptamente coisificar as pessoas negras, produzindo e reproduzindo concepções estereotipadas acerca das pessoas africanas, impondo pela violência privada e de Estado a dominação, produzindo e reproduzindo símbolos que se consolidaram, depois de séculos, como racismo científico. E o objetivo, na determinação em última instância, estava justamente na apropriação da riqueza de forma privada e entre nações.

A raça, portanto, é um produto sócio-histórico, gestado ao longo de séculos e utilizado como mecanismo de classificação e legitimação da dominação, que na contemporaneidade se perpetua a partir das ideias/cultura e práticas racistas já consolidadas, mas também pelos locais sociais e de classe nos quais se encontram historicamente as pessoas negras, como maioria no sistema carcerário, maioria da população em situação de rua, maioria nos postos de trabalho de pouco prestígio social etc.

A partir dessa análise é possível perceber dimensões da vida social que estão interligadas numa totalidade. A dimensão econômica das relações sociais e as não econômicas: a) o desenvolvimento do capitalismo, o acúmulo de riqueza, a exploração aviltante de um grupo sobre outro (luta de classes); e b) a produção da cultural em geral, que se produz e reproduz desse emaranhado de relações complexas, que se desenvolve a partir delas ou às legitima: a religião, a justiça, o Estado, entre outros.

Neste sentido, atendo-se a uma perspectiva antirracista, é preciso pensar como foram criados os estereótipos relativos às pessoas negras ao ponto de se consolidarem como racismo científico e, com essa conclusão, atuar numa ação objetiva contrária: é preciso criar de forma concreta a ocupação de espaços de prestígio social por pessoas negras para a desconstrução da ideia de que as pessoas negras são racialmente inferiores.

Desta forma, as Políticas de Ações Afirmativas surgem como uma ação prática objetiva e de alta relevância. No que se refere ao acesso ao ensino superior, por exemplo, a mudança do perfil dos estudantes foi quase imediata. O direito de acesso ao ensino superior no Brasil esteve durante muito tempo, quase exclusivamente, exercido por pessoas brancas. Mas com o advento das cotas raciais a presença de pessoas negras na Universidade se tornou uma realidade. O que culminou em diversos núcleos de estudantes negros discutindo e produzindo conteúdos científicos, tornando-se importantes pessoas públicas que passaram a ser referência para outras pessoas negras, bem como veículos de desidratação das compreensões racistas criadas e reproduzidas por séculos. Entretanto, o campo da educação não pode ser o único setor da sociedade atingida por essa política.

As pessoas brancas tiveram nesse país, durante séculos, todas as ações estatais voltadas ao seu benefício. Essa é uma constatação, embora pareça óbvia, fundamental para entender o motivo delas estarem em condição econômica superior às não brancas. Como consequência, cabe também à sociedade dirigir políticas de Estado para intervir positivamente na vida socioeconômica da parcela majoritária da população brasileira, contribuindo assim para impactar na desconstrução da racialização das pessoas negras, a partir de condições materiais objetivas, e não apenas em discursos demagógicos.

Dentro do campo das organizações partidárias também é necessário um compromisso prático e verdadeiro em torno dessa questão. Os partidos em seus documentos oficiais sempre se posicionam contra o racismo. Mas isso é algo que está implícito na própria legalidade da existência da organização, do contrário seriam organizações criminosas. A questão prática/objetiva é que, não basta ter o recorte percentual obrigatório de candidaturas negras, é preciso eleger pessoas negras, com programas de ação antirracista que vislumbre a transformação objetiva da condição de vida das pessoas, um combate ao racismo na sua materialização, não apenas na dimensão simbólica e nos discursos.

Essa é a parte mais difícil e o argumento é sempre de que nossa sociedade é racista e o partido não tem como garantir a vitória nas urnas. Pois, bem, mas, além da questão da prioridade de recurso nas eleições, que contribuiriam para que as vitórias acontecessem, existe uma ação muito mais profunda e que indica o racismo dentro dos partidos: quando um partido vence uma eleição para governador ou prefeito quem são os secretários e as secretárias da gestão? Para isso o partido tem autonomia, ou não tem? Esses gestores, principalmente os de saúde, de educação, de assistência e de esportes, tornam-se pessoas públicas com grande visibilidade e chance de posteriormente serem eleitos. Esse é o caminho prático, de ocupação de lugares objetivos, concretos, para a desconstrução do racismo. Se pessoas negras passarem a ocupar esses espaços a vitória nos pleitos se tornam plausíveis, pois a ideia que se perpetua a partir dos lugares reais observados se chorariam com a realidade contrária e inexoravelmente se dirimiria.

O racismo, portanto, verificado como uma construção sócio-histórica, produto da sociedade, pode, da mesma forma que foi construído, fazer o caminho contrário. A mobilização de uma estrutura colossal, que foi a iniciativa privada e estatal para explorar riqueza a partir da mão de obra escravizada, produziu estereótipos que aos poucos foram ganhando contornos raciais até se consolidarem como racismo científico. O caminho contrário, sem dúvidas, é mobilizar de forma idêntica recursos, ações privadas e estatais para deslocar as pessoas negras dos locais materiais de reprodução do racismo. Ou seja, aqueles lugares ocupados que contribuem para reproduzir a ideia de inferioridade das pessoas negras em relação à brancas. Esta é a forma básica de desconstrução do racismo, pois a ideia não constrói a realidade, mas é da estrutura material das relações sociais que erige as ideias, a cultura em geral.

Uma ação para a destruição da base material do racismo foi, sem dúvida, a abolição da escravidão. Essa ação retirou, no campo legal, o direito de pessoas brancas escravizarem as não brancas. Entretanto, sem garantir a equiparação da ocupação dos espaços de prestígio social e, a longo prazo, o fim das desigualdades socioeconômicas, não será possível de forma objetiva avançar na luta antirracista e alcançar a superação do racismo.

Jônatas Nery, militante do Movimento Negro Unificado (MNU), é formado em Ciências Econômicas, Serviço Social e mestre em Política Social, ambos pela Universidade Federal do Espírito Santo. Atualmente é doutorando em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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