O dia 21 de Março e o Museu da Escravidão, por Eloi Ferreira de Araújo

Centros de memória são necessários, para que a luta pela verdadeira liberdade, no Brasil, seja conhecida: a luta que é abolicionista e antirracista

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Há alguns anos, estive na África do Sul, em encontro que tinha como fio condutor o Dia Internacional para Eliminação da Discriminação Racial, em conformidade com a Resolução da ONU que condenou o massacre de Shaperville, Joanesburgo, no qual 69 pessoas foram mortas quando protestaram contra a Lei do Passe, em 21 de março de 1960.

Naquela ocasião, visitei o Museu do Apartheid, que registra os horrores e as agressões daquele sistema racista, que privava a população negra sul-africana dos mesmos direitos garantidos aos herdeiros dos colonizadores europeus. A visita foi muito marcante desde a entrada, que, simbolicamente, indica guichês de ingressos para negros e para não-negros.

Quando retornei ao Brasil, foi inevitável ter a certeza de que precisamos nos debruçar sobre a construção de um grande centro de memória, à semelhança do Museu do Apartheid, que seria o Museu da Escravidão.

Muitos companheiros disseram-me que o importante seria um museu da cultura afrobrasileira, ou da cultura negra, ou da história da África e dos afrodescendentes, enfim um museu que escapasse do registro dos quatro séculos de escravidão racial de africanos e de seus descendentes em nosso país. Alguns chegaram a me dizer que eu propunha um Museu dos Horrores. Esses argumentos esquecem-se, contudo, que o Museu do Holocausto, na Alemanha, não é o Museu do povo Judeu, ou o Museu da Diáspora, ou o Museu da História do Povo Judeu.

Também esquecem que centros de memória estão espalhados por todo o mundo e que são visitados, anualmente, por milhões de pessoas, ávidas por cultura e informação. Recentemente, por exemplo, foi inaugurado, em Liverpool, o Museu da Escravidão; em Angola, há o Museu da Escravidão; o Museu do Escravo, em Belo Vale, município a oitenta quilômetros de Belo Horizonte, tem registro do túmulo do escravo desconhecido e das atrocidades que aquele homem sofreu. Há que se destacar que todos os centros de memória e de cultura trazem, simultaneamente, a história e a consciência de que aqueles horrores não podem se repetir jamais.

A falta da consciência construída pela memória, no Brasil, é gritante: nas condições de brutal desigualdade que o país ainda enfrenta, como herança da escravidão, o passado repete-se, não como farsa, mas como ofensa aos direitos de trabalho digno.

Os acontecimentos recentemente descobertos, nas vinícolas do sul do país, evidenciam o quanto precisamos registrar a história, para que os mínimos indícios do racismo e dos abusos racistas soem como sirenes.

Nesse sentido, é profundamente esperançosa a determinação do governo brasileiro, por meio do Ministério da Igualdade Racial, do Ministério da Cultura e de outros agentes governamentais, de construção do Museu da Escravidão.

Certamente, o status quo resistirá ao projeto, com a voz de inúmeros atores sociais, assim como o faz com as dificuldades para a implementação das leis 10.639 e 11.645, que dispõem sobre o ensino da cultura afrobrasileira e da cultura indígenas, mas é preciso prosseguir.

É passado o tempo de estátuas e de rodovias com o nome de bandeirantes, basta do esquecimento aos líderes negros das rebeliões contra a escravidão! A saga de Zumbi e Dandara no quilombo dos Palmares, assim como os heróis das revoltas dos Malês e da Chibata, são marcos libertários da história nacional e, ainda assim, são menos ensinados, nas escolas e nos museus nacionais, do que os nomes das capitais europeias.

Centros de memória são necessários, para que a luta pela verdadeira liberdade, no Brasil, seja conhecida: a luta que é abolicionista e antirracista. As luzes da memória iluminam muito mais do que o obscurantismo do esquecimento. Vivas ao Museu da Escravidão!


Eloi Ferreira de Araujo
 é advogado, ex-ministro da Igualdade Racial e ex-presidente da Fundação Cultural Palmares.

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