Briga de criador e criatura expõe entranhas e ameaça governo

Saída de Sérgio Moro faz a tese do impeachment ganhar força e conquistar a maioria em pesquisa. Cientistas políticos temem radicalização do presidente para manter o núcleo duro de sua base de apoio, que queimou camisas do ex-juiz

Sérgio Lima

Jair Bolsonaro e Sérgio Moro

O bolsonarismo está em polvorosa com o embate entre Jair Bolsonaro e Sérgio Moro. Pela primeira vez na série histórica de pesquisas realizadas pela consultoria Atlas Político, a maioria dos entrevistados (54%) é favorável a um processo de impeachment contra o presidente. A pesquisa, feita com 2.000 pessoas entre 24 e 26 de abril, mostra que 72% dos entrevistados concordam com as críticas feitas por Moro na coletiva em que anunciou sua demissão, na última sexta-feira, 24.

“Há uma queda sem precedentes da imagem positiva que o presidente tinha na nossa série histórica. Isso se reflete em várias perguntas relacionadas, como a sobre o impeachment. Pela primeira vez, a gente observa uma maioria a favor num momento em que se começa a discutir mais sobre isso, o que pode criar uma pressão popular sobre o Congresso”, disse o cientista político Andrei Roman, criador do Atlas Político, ao jornal El País.

Bolsonaro vinha sofrendo queda na aprovação desde fevereiro, devido ao comportamento errático com a crise do coronavírus e o baixo desempenho econômico, mas os reflexos da demissão de Moro afetaram diretamente seu capital político: 64,4% desaprovam seu desempenho, enquanto 30% o aprovam. Enquanto isso, o ex-ministro viu a aprovação chegar a 57%, índice que não alcançava desde a suspeição levantada sobre a sua atuação como juiz após o vazamento de mensagens da Vaza-Jato.

O ranking da consultoria de dados Quaest, que analisa o alcance digital de líderes políticos, mostra o índice de Bolsonaro despencar, enquanto Moro subiu e se aproximou dele. Na sexta, 24, Moro alcançou 52,1 pontos (acima dos 30,7 que teve no dia anterior), enquanto Bolsonaro registrou 75,8 (abaixo dos 82,9 de quinta-feira). A tendência continuou no sábado (25): Moro chegou a 55,3, enquanto Bolsonaro caiu para 70,3.

O chamado IPD (Índice de Popularidade Digital), com pontuação que varia de 0 a 100, é medido a partir de dados de Twitter, Facebook e Instagram, além de YouTube, Google e Wikipédia.

Seguem firmes, porém, os eleitores radicais de Bolsonaro. Neste domingo, 26, eles foram às ruas em algumas capitais para queimar camisas com a imagem de Moro. “O presidente pode assumir uma narrativa ainda mais agressiva, para consolidar um apoio de 22% dos brasileiros”, avalia Thiago de Aragão, cientista político da Arko Advice, para quem há uma aceleração de crises no governo. “É como se um casal fosse sequestrado, e durante o sequestro a mulher resolvesse pedir o divórcio”, compara.

O curto circuito promove mais estragos na já frágil imagem do presidente mundo afora. “Um investidor me disse: ‘Como posso vislumbrar no curto e médio prazo a expectativa de que decisões serão tomadas de modo racional e não emocional no Brasil?”, conta Aragão, lembrando que os donos do dinheiro buscam previsibilidade para fazer suas escolhas.

“Brasil vai ter que se explicar”

Em entrevista à BBC News Brasil, Drago Kos, chefe do grupo de trabalho anticorrupção da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), qualificou como “extremamente preocupante” a demissão de Moro. “Ministros vão e vem, isso não é um problema para nós. Mas quando o ministro da Justiça faz acusações de interferência grave em seu trabalho de combate à corrupção, isso é sério e nos interessa. O Brasil vai ter que explicar o que fez o ministro da Justiça renunciar acusando o presidente de interferência no trabalho da polícia”, afirmou.

Kos, que comanda a área de combate à corrupção no órgão desde 2014, mesmo ano em que a Operação Lava Jato teve início no Brasil, diz que as afirmações de Moro não podem cair no vazio e devem ser investigadas. “E se forem todas verdadeiras, o presidente deve responder por condutas criminosas”.

Desde o início do governo, Bolsonaro adotou como um de seus principais objetivos a obtenção de um assento na OCDE. Negociou o endosso da candidatura junto aos Estados Unidos, fazendo uma série de concessões ao governo Trump. O apoio americano ao Brasil veio em janeiro. Mas, para ser aceito no grupo, o país precisa comunicar seus avanços em temas como saúde, educação e combate à corrupção.

Também em entrevista à BBC, a cientista política americana Amy Erica Smith diz acreditar que Moro esteja genuinamente preocupado com o Estado de Direito no Brasil. Professora da Iowa State University, nos Estados Unidos, ela questiona ainda a “urgência de Bolsonaro” em interferir na PF em um momento político já frágil, em meio à pandemia de coronavírus.

Especialista em política brasileira e movimentos evangélicos, Smith afirma que os evangélicos seguem como a base do apoio popular do presidente graças à agenda anti-aborto e às políticas de gênero e sexualidade que o governo defende. “Mas, se todas as elites políticas abandonarem Bolsonaro, eles também o abandonarão. Não vão dar um cheque em branco para Bolsonaro.”

O brasilianista Anthony Pereira, diretor do Brazil Institute, da Universidade King’s College, em Londres, defendeu em entrevista à BBC que “não se pode subestimar Bolsonaro”, mas reconhece que sua sobrevivência política vai depender de como seu eleitorado vai reagir. “Bolsonaro pode ter ganhado a batalha com Moro ao conseguir demitir o diretor-geral da Polícia Federal, mas não a guerra. Muitas pessoas que apoiavam o governo pelo símbolo que Moro representa, a luta contra a corrupção, vão ficar muito decepcionadas”.

Pereira lembra que desde o início do governo “sempre houve tensões” entre duas correntes que elegeram Bolsonaro: de um lado, a bolsonarista, “preocupada com questões culturas e ideológicas,” e, de outro, a lavajatista, “contra a corrupção, que queria que as investigações continuassem”.

Proteção familiar

Pereira afirma que as alegações de Moro fazem parecer que “o governo não estava comprometido com a luta contra a corrupção, mas em proteger o clã do presidente. Representa uma derrota para o governo e isso deve ser preocupante para qualquer governante”.

“Não descartaria a possibilidade de Moro sair candidato, pois largou a carreira de juiz federal e virou ator político”, acrescenta Pereira. “O Brasil enfrenta três crises ao mesmo tempo: sanitária, econômica e política. Não vejo nenhum outro país em uma situação tão severa. O país tornou-se sinônimo de instabilidade, uma pecha que antes era associada aos vizinhos, como Argentina”.

O pedido de demissão de Moro deve corroer uma base de apoio importante do presidente, a dos chamados “lava-jatistas”, conforme o cientista político Adriano Codato, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). “Pode ser uma oportunidade para sabermos qual é de fato o tamanho da extrema-direita radical no Brasil”, acrescenta.

As interações nas redes sociais nos próximos dias, diz o cientista social, devem dar uma ideia mais clara do saldo da saída de Moro. Levantamento feito pela Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (DAPP-FGV) observou uma divisão inicial entre os apoiadores do presidente.

Para Codato, o futuro de Bolsonaro dependerá de três variáveis: da base social, que representa o apoio popular do qual goza o governo, da oposição, que ainda não mostrou uma agenda concreta até o momento, e da base parlamentar. O eventual desembarque de uma parte do eleitorado, ele avalia, pode levar a uma “reconfiguração forte” do bolsonarismo, mais apoiado no conservadorismo moral e nas classes populares.

O que está em jogo

“O que está em jogo não é a sobrevivência política de Bolsonaro, mas a integridade das instituições brasileiras. Isso vai além do próprio governo, da própria conjuntura política. A conquista da autonomia da PF não foi alcançada do dia para noite. Esse é um dos pilares do Estado democrático de Direito. Ninguém está acima da lei. Não vivemos mais na Idade Média nem sob o jugo de monarcas absolutistas”, conclui.

O The Guardian, um dos principais jornais do Reino Unido, afirmou que a saída de Moro cria um conflito político importante no momento em que o Brasil luta para conter a pandemia de coronavírus. O NY Times, principal jornal norte-americano, avalia que a saída do ministro acontece em meio a um governo tumultuado.

O argentino Clarín citou a onda de panelaços minutos após a saída do ex-ministro. O francês Le Figaro noticiou que Moro saiu após ingerências políticas de Bolsonaro na Polícia Federal. O jornal português Diário de Notícias também destacou a fala de Moro sobre interferência de Bolsonaro na autonomia da PF.

O site da revista alemã Der Spiegel cita que a saída de Moro é a segunda saída de ministro do gabinete de Bolsonaro em curto espaço de tempo. A revista observa ainda que a gestão “relaxada” de Bolsonaro não é alvo de polêmica apenas dentro do governo, já que uma parte dos próprios apoiadores do presidente recentemente se manifestaram pedindo intervenção militar.

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