Buch: Projeto de Moro não sobrevive a uma análise do 1º ano do curso de direito
Em artigo publicado na CUT, juiz membro da AJD aponta que projeto do ministro é “atécnico, despido de fundamento científico e ineficaz ao resultado que se propõe”
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No Brasil e em boa parte do mundo, como resultado de anos de gotejamento lento de raiva e intolerância, por meio de mensagens subliminares ou explícitas em redes comandadas por algoritmos, o terreno se tornou fértil para o populismo e o medo se fez aumentar, favorecendo regras contrárias às garantias fundamentais.
Nesse terreno arenoso, as populações econômica e socialmente vulneráveis enfrentam confrontos entre as forças públicas de segurança, grupos paralelos que desenvolvem especialmente o comércio ilícito de drogas e milícias. Ninguém é poupado! E a principal vítima é a vida humana.
Já a classe média, cega perante o abismo social que impera no país, fecha-se em copas para em seguida demandar ilusória proteção de suas propriedades. Os mais abastados, esquecendo-se convenientemente de que seu ouro provém em boa parte da exploração histórica da mão de obra em uma nação escravocrata e de alarmante concentração de riqueza, fazem as malas e mudam-se para Miami.
Incapaz de compreender que esse fenômeno mais dia menos dia atingirá a todos de forma cada vez mais violenta, o estado brasileiro continua a seguir as políticas neoliberais dos EUA, agora com o atual Presidente batendo continência ao Tio Sam. Conforme bem lembra Luïc Wacquant (Prisões da Miséria), abandonam-se os valores culturais, esquecem-se dos expertos e criam-se medos e tragédias sociais. O objetivo como se sabe é fortalecer o estado policial para então reduzir os direitos humanos e os paradigmas constitucionais a meros obstáculos ao enfrentamento do crime.
Neste ano de 2019, projetos penais de emergência ganharam fôlego, alimentando um Código Penal vetusto e que em sua parte especial continua ideologicamente comprometido com o capital. Dizendo-se movido pela comoção popular e para isso deslegitimando instituições seculares, num terrível retrocesso que muito se aproxima da teoria de Carl Schmitt, jusfilósofo do nazismo, o governo federal centra suas atenções em políticas repressivas para lá de inconstitucionais.
Apenas para ficar num exemplo, depois de promover um decreto presidencial para a flexibilização da posse de armas de fogo em detrimento das forças policiais, o ex-juiz e hoje ocupante do cargo político de Ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro apresentou à nação um projeto intitulado de “anticrime”, que de anticrime nada tem e que não sobrevive a uma análise acadêmica do primeiro ano do curso de direito.
Esse documento atécnico, despido de fundamento científico e ineficaz ao resultado que se propõe, entre inúmeras temeridades, concede uma verdadeira licença para matar, a partir da invenção de uma nova espécie de legitima defesa, a legítima defesa vidente, intuitiva, premonitória.
Nessa modalidade desejada por Moro, o policial que em risco iminente de conflito armado prevenir injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem, estará agindo sob o amparo da legítima defesa, agora na modalidade vidente, intuitiva, premonitória. A premonição está no “risco iminente” e no “prevenir” e é dessas expressões que a licença para matar virá.
Ou seja, a tinta do discurso que fundamenta o projeto “anticrime” é extraída das veias abertas da periferia. Quando o policial visualizar uma pessoa portando uma arma, especialmente numa favela, pois o foco do projeto é seletivamente a favela, independentemente do sujeito estar apontando a arma contra alguém ou tiver intenção de cometer algum ato violento, esse policial, esse sniper abaterá aquela pessoa e para tanto se utilizará da legítima defesa vidente, intuitiva, premonitória. E será um salve-se quem puder, ou melhor, já está sendo, considerando as notícias que chegam do Rio de Janeiro e de outras capitais e estados.
Nesse ciclo, os fundamentos racionais e científicos da civilidade e os valores éticos da sociedade estão sendo envenenados. Sobretudo dentro do sistema de justiça criminal, a ciência da criminologia, seja a tradicional ou a crítica, que por décadas e até séculos tem demonstrado que a função da pena não serve para o que oficialmente se propõe – a prevenção -, é invisibilizada.
Estamos vivendo sob a égide de um direito penal ideologicamente comprometido com a segregação e opressão das camadas mais pobres, destinado a sedimentar o poder de uma elite branca e a encarcerar massivamente jovens de 18 a 28 anos de idade, pretos e pardos.
Atualmente, pelos números do Conselho Nacional de Justiça (geopresídios,) são mais de 700.000 (há quem diga mais de 800.000) presos no Brasil. Em números absolutos, possuímos a terceira maior população carcerária mundial, ficando atrás dos EUA e China. Há pouco mais de uma década essa população era a metade disso.
Assim, a seguir essa linha de direito penal máximo, ultrapassaremos num par de anos a marca de um milhão de presos. Mas não para por aí. O fato é que não há vagas para todo esse contingente. O estado não investiu e não investirá o suficiente em prisões, por uma questão puramente de custos, de economia.
Por todas as unidades prisionais, ressalvadas raras exceções, detentos vivem sem colchão para dormir, sem kit-higiene, sem trabalho, sem estudo, sem acesso à saúde, coisificados nesses navios negreiros do século 21.
Por outro lado, a ausência do estado dentro das prisões, além de por si só causar o horror, tem feito nascer e crescer nos corredores do sistema facções e organizações para-legais. Quando preso, é preciso sobreviver, para tanto é preciso se aliar, mesmo que para lutar contra o estado, de forma mais violenta.
Ou seja, o sistema penitenciário brasileiro está falido, as chibatadas do senhor feitor não cessam, os calabouços coletivos continuam lá a lembrar que neste país nem todos os seres humanos são tratados como seres humanos. E o governo brasileiro, capitaneado pelo ministro da justiça, no lugar de enfrentar essa tragédia, lança mão de projetos populistas, insuflando todo esse estado de coisas inconstitucional.
Há lugares onde o salto ético já foi dado, onde o modelo neoliberal não foi aplicado, ao menos não com tanto empenho como no Brasil – veja-se a Alemanha, Holanda, Noruega, Islândia, entre outros. Nesses países, a violência tem sido reduzida e as prisões têm sido fechadas. Por lá o encarceramento não é colocado como primeira e única resposta do estado aos que estão na margem. Por aqui precisamos olhar esses exemplos e tomar essas lições.
Ultrapassamos o limite da ilicitude tolerada, a linha do mínimo existencial foi rompida e já é mais do que tempo de superar a violência e enfrentar essa odiosa cultura do direito penal máximo e do superencarceramento.
Talvez um caminho viável esteja nas políticas das alternativas penais, desde que haja humildade e boa-fé do governo, algo que parece impossível nestes tempos sombrios, além do pressuposto básico de respeito à Constituição e da distribuição de renda com oferta de oportunidades iguais a todos.
Através de penas restritivas de direitos e medidas alternativas à prisão, estas fortalecidas pelas audiências de custódia, o superencarceramento tem chances de diminuir. E reduzindo o encarceramento, deixando o direito penal no seu devido lugar, como a última hipótese, o estado conseguirá cuidar conforme a Constituição e os direitos humanos daqueles que, superadas todas as alternativas, depois do devido processo legal, são condenados com trânsito em julgado pela prática de um delito e têm a privação da liberdade imposta.
O criminologista norueguês Nils Christie já afirmou que a tristeza é inevitável, mas não o inferno criado pelo homem (Limites a dor: O Papel da Punição na Política Criminal). Enquanto o estado brasileiro continuar a violar os direitos humanos, a ignorar a Constituição e especialmente o fundamento da dignidade da pessoa humana (art.1º, III, da CF), a dor das prisões permanecerá ferindo o tecido da nação.
É preciso, com a espinha ereta e a cabeça erguida, defender a Constituição, pois ela ainda é o pilar da nossa democracia. Juízes, promotores, autoridades públicas, o ministro da justiça e seu presidente, todos no futuro serão julgados. O flagelo da violência, do extermínio da juventude negra e o holocausto das prisões brasileiras pesarão em nossos ombros. Porque essa dor, essas violações, são sobre nós, sobre o que somos e sobre o que deixaremos para nossos filhos.
João Marcos Buch é juiz de direto da vara de execuções penais da Comarca de Joinville/SC e membro da AJD
Publicado originalmente na CUT