Carolina Maria de Jesus: catadora de papel e palavras
No mês da mulher negra, conheça a história da escritora que definiu a favela como “quarto de despejo” e emocionou o ex-presidente Lula com seus escritos
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“A favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos.” (Carolina Maria de Jesus)
Quase sessenta anos desde a publicação de “Quarto de despejo: diário de uma favelada”, os escritos de Carolina Maria de Jesus ressoam com ainda mais força nos dias atuais. A principal obra da escritora negra, favelada e semi-alfabetizada chegou ao mercado editorial em agosto de 1960 e logo ganhou o mundo, sendo traduzida em mais de dez línguas.
Catadora de papel, Carolina utilizava os cadernos que encontrava no lixo para relatar, com exímia habilidade narrativa e crítica, o cotidiano na favela do Canindé, na Zona Norte de São Paulo, onde vivia com os três filhos.
A trajetória da escritora foi além dos relatos sobre vizinhos e da rotina no seu local de moradia. Carolina também refletia sobre o cenário de desigualdade e escrevia sobre dilemas da condição humana.
A obra de Carolina Maria de Jesus, no entanto, esteve por muito tempo à margem da literatura e não era legitimada como tal por estudiosos e outros escritores. A pesquisadora Raffaella Fernandez, uma das principais estudiosas da produção Caroliniana, conta que, a princípio, os relatos da escritora foram consumidos como um produto que despertava curiosidade pela realidade relatada pela autora, mas sem atenção para o trabalho individual de sua escrita.
“Ela sempre foi muito cobiçada enquanto uma escritora de diários, de relatos, testemunhos de uma mulher pobre e favelada, e ponto final. Com o advento de alguns estudos em torno da poética da Carolina e da descoberta de diversos textos literários é que se passa a pensar a escritora a partir desse viés artístico, o que foi muito tardio”, diz a pesquisadora.
Em sua tese de doutorado, que teve publicação ampliada com o título “A poética de resíduos de Carolina Maria de Jesus”, Raffaella reforça que a delimitação da escrita da autora apenas como um relato testemunhal, muitas vezes marcado por desvios gramaticais, é algo que reduz a possibilidade de explorar a linguagem literária de sua obra.
“Se for considerada somente a capacidade de traduzir a voz própria de um tal modo de enxergar e expressar seu mundo, perdem-se as possibilidades de encontrar uma língua literária em sua obra, aquela que forneceu a matéria-prima para sua escrita”, pontua.
A escritora nasceu em 1914, na cidade de Sacramento, interior de Minas Gerais e mudou-se para São Paulo em 1937. Chegou à favela do Canindé, hoje extinta, em 1948. Antes de se tornar conhecida por “Quarto de Despejo”, trabalhou como empregada doméstica na casa de um médico, onde podia ler os livros da biblioteca particular nos dias de folga.
Os diários de Carolina foram publicados pelo jornalista Audálio Dantas, que faleceu no último 30 de maio. Em 1958, ele foi até a favela do Canindé para fazer uma reportagem para a Folha da Manhã. A visita se desdobrou no contato com Carolina e na descoberta dos seus escritos.
O reconhecimento tardio da obra literária de Carolina, na opinião de Raffaella Fernandez, também se deve ao contexto em que a produção foi descoberta, tendo em vista que tratava-se de um profissional com interesses jornalísticos, e não voltados para a crítica literária.
“Quem viabilizou a produção foi um repórter, que tinha interesse nessa obra enquanto jornalista, e não crítico literário, que certamente iria buscar essa Carolina literária com avidez”, opina.
Carolina tinha absoluta consciência de que a sua origem negra e pobre, em um país racista e machista, como relata a pesquisadora, se constituía como uma barreira para o seu reconhecimento como escritora, o que, segundo ela, pode ser percebido nos seus textos.
“A maior força dos escritos de Carolina advém do fato de que a sua escrita não é encapsulada em normas, embora ela tivesse essa preocupação e o tempo todo soubesse que para ser reconhecida como uma grande escritora ela teria de se valer da língua do colonizador com bastante propriedade”, completa.
A pesquisadora ressalta ainda que a obra Caroliniana extrapola os limites de gêneros textuais, não podendo ser rotulada apenas de uma forma; trata-se, como denomina Raffaella, de uma “poética de resíduos”.
“A originalidade dessa obra vem dessa mescla de gêneros, em que ela produz o que eu denomino como uma ‘poética de resíduos’. Ela vai captando discursos literários, não literários, fazendo submergir o que Boaventura de Sousa Santos chama de ‘ecologia do saber’, um saber outro, que não é necessariamente do colonizador, que não é institucional, que é aquele que se faz nas margens e que não se permite que seja apagado. A Carolina traz essa força e essa materialidade”, acrescenta.
“O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome”
Entre as idas para buscar água, o preparo das refeições diárias, o cuidado com os filhos e os dias catando papel nas ruas de São Paulo, Carolina também refletia sobre questões ligadas à política. Em “Quarto de despejo” são várias as passagens nas quais ela se dedica ao assunto.
Em uma delas, escreve que “o Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo e nas crianças”, apontando que esse seria um caminho para a erradicação da desigualdade que ela testemunhava no dia-a-dia. O ano era 1958, e o desejo de Carolina se concretizou somente 44 anos mais tarde, quando o Brasil elegeu Lula para a presidência da República.
Carolina faleceu em 1977. Não pôde, portanto, ver o Brasil sendo dirigido por um presidente que, assim como ela, viveu a realidade de acordar de noite e não ter o que comer. Ela também não teve a oportunidade de ver o país deixando o Mapa Mundial da Fome, como resultado das políticas sociais de um governo que colocou essa missão como prioridade.
Lula, por sua vez, teve contato com a obra de Carolina. Em 2014, junto ao ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, participou da inauguração da Central Mecanizada de Triagem “Carolina Maria de Jesus”, em Santo Amaro, na capital paulista. O ex-presidente recebeu “Quarto de despejo” das mãos de Raffaella. Ela conta que o ex-presidente foi às lágrimas ao ler os escritos de Carolina.
“Como eu sabia que o Lula estaria presente, levei o livro. Me aproximei do Lula, com o livro aberto na página em que ela escreveu que “o Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome”, e falei: olha só o que a Carolina, que está sendo homenageada, escreveu. Quando leu, ele chorou. Foi um momento muito especial”, relata.
A produção literária de Carolina vai muito além de “Quarto de Despejo”, a escritora também deixou romances, contos, poemas e crônicas. Alguns desses escritos inéditos foram publicados neste ano, no livro “Meu sonho é escrever”, organizado por Raffaella Fernandez. Em 2014, ano do centenário de Carolina, foi publicado “Onde estaes felicidade?”, que reúne textos originais e manuscritos da autora.
Em todo esse trabalho, a escritora deixou marcada a sua visão do mundo e de uma sociedade desigual que, apesar de ter passado por transformações, persiste no isolamento, violência e invisibilização de mulheres como Carolina Maria de Jesus.
Por Geisa Marques, da Comunicação Elas por Elas