Carta Capital: Branco, abonado e parlamentar

Reportagem da revista “Carta Capital” mostra que as reviravoltas do enredo político não deixam dúvida: o patriarcado continua na vantagem

Geraldo Magela/Agência Senado

A cara do Senado é conhecida

Uma análise recente com dados demográficos dos nossos 81 senadores feita pela BBC Brasil revela que o perfil predominante no Senado é o de um homem branco, com curso superior e longa carreira política, boas chances de ser membro da bancada ruralista ou de pertencer a “clãs” políticos, e investigado pela Justiça.

Não vi pesquisa semelhante ser feita em relação à Câmara, mas estou segura de que os resultados não seriam muito diferentes.

Basta observar nossas casas de representatividade política para perceber que, estejam seus membros sob investigação judicial ou não, sejam eles herdeiros de grandes fortunas ou não, e situem-se eles à esquerda ou à direita, a maioria das posições de poder é ocupada por homens brancos.

O mesmo vale para outras instituições, públicas e privadas, e não limitadas ao contexto brasileiro. A composição dos cargos de direção – de governos, empresas, clubes ou associações – é sempre um retrato do patriarcado.

A presença maciça de homens brancos em postos de decisão não é interpretativa, ela é factual. Não vê quem não quer.

O patriarcado é um conceito usado por feministas para nomear o paradigma que normaliza que as instituições sejam conduzidas por homens. Por isso expomos e criticamos o patriarcado em muitas frentes, afinal seja no âmbito pessoal, no social, no econômico ou no político, ainda são os homens quem mais tem poder para decidir os rumos da sociedade.

Isso não significa que todos os homens estejam no controle de todas as outras pessoas. Tomar a ideia do patriarcado como monólito que enquadra todos os homens como vilões é tão simplista quanto tomar a ideia do feminismo como monólito que enquadra todas as mulheres como vítimas.

Análises sociais requerem pensamento crítico para que quaisquer avaliações – dos fatos e das relações de poder que determinam como as narrativas acerca dos fatos são construídas – sejam matizadas.

Nenhuma análise social é imparcial, pois nenhuma análise social é feita por robôs que vivem no vácuo. Qualquer exame de qualquer fenômeno social contém referências aos sujeitos neles envolvidos. Por isso é importante considerar as identidades dos sujeitos sob escrutínio nas análises acerca de quaisquer fenômenos.

Chamamos de “política de identidade” os argumentos políticos que incidem sobre os interesses e as perspectivas de grupos sociais organizados por eixos como classe, religião, identidade de gênero, orientação sexual ou etnia, dentre outros.

Um componente essencial de análises sociais envolvendo políticas de identidade é a reflexão acerca das formas como a maioria é governada a partir dos sistemas de valor, credo e comportamento daqueles que preenchem os espaços de poder.

Movimentos sociais são fundamentados na ideia de aumentar a representatividade política, social e institucional das ditas minorias justamente para ampliar a representatividade de sistemas de valor, credo e comportamento que influenciam decisões políticas que afetam a maioria.

Mas a formulação de que movimentos sociais visam aumentar a participação política das “minorias” sempre me pareceu falaciosa, afinal de contas é a maior minoria de todas – aquela composta por homens, brancos, ricos e heterossexuais – que ocupa a maioria das posições de poder.

Em “Invasores de espaço: raça, gênero e corpos fora de lugar” (tradução livre minha), Nirmal Puwar oferece uma investigação detalhada das formas como certos corpos são considerados passíveis ou não de ocupar espaços de poder.

Ela revela como espaços públicos tendem a ser preenchidos por corpos que configuram o que se entende como a “norma”, evidenciando que o padrão universal de humanidade são homens brancos.

Ainda de acordo com Puwar, é socialmente sancionado que espaços públicos sejam reservados a homens brancos, e esta é uma das razões pelas quais outros tipos de corpos acabam ganhando tanta visibilidade ao ousarem preencher espaços que, normativamente, não são destinados a eles.

Para a autora, corpos femininos e/ou não brancos que emergem em espaços de poder são considerados “invasores de espaço” porque suas meras presenças – antes e independentemente de suas propostas – perturbam o status quo.

Este é um dos motivos pelos quais lideranças negras, LGBT ou femininas incomodam a ponto de serem sistematicamente proscritas de espaços de poder. A inclusão de uma pluralidade de identidades em posições de poder chacoalha as fundações do sistema vigente, que considera homens brancos a norma universal de humanidade.

Espaços de poder público são predicados na presunção de objetividade e imparcialidade de quem os ocupa. Isso porque quem os ocupa deveria, ao menos em tese, representar um ser humano universal.

Mas a constatação de que os corpos que ocupam espaços de poder também são marcados por coisas como cor e gênero é inegável.

A capacidade de não ser marcado negativamente pelo corpo que se tem é uma das maiores evidências do privilégio, e no patriarcado heteronormativo branco o privilégio é de homens caucasianos declaradamente heterossexuais.

Homens estes que sempre estiveram no poder, que promovem políticas para permanecerem no poder, e cujas ferramentas de manutenção de poder se espraiam por todas as instituições.

É por conta disso, por exemplo, que feministas se dedicam a apontar a misoginia direcionada às mulheres que estão no poder (ou ao menos perto dele).

Dilma Rousseff e Janaína Paschoal foram – por motivos completamente diferentes, e embora elas estejam em polos politicamente opostos – construídas como loucas por narrativas midiáticas tanto de veículos que se posicionam contra o golpe quanto dos que se posicionam a favor do impeachment.

A suposta loucura da primeira serviu de artifício retórico para desestabilizar sua capacidade de governar. A suposta loucura da segunda serviu de artifício retórico para desestabilizar sua capacidade de fazer oposição. O que Rousseff e Paschoal têm em comum? Pouco além de serem duas mulheres que ousam ocupar espaços políticos.

Marcela Temer foi garota propaganda de uma feminilidade louvável, constituída através de valores tradicionais de submissão. Ser bela, recatada e do lar não é necessariamente problemático – e não saberia dizer se estes são atributos que a vice-primeira-dama usaria para descrever a si própria – mas não importa, porque foi a imagem de Marcela Temer – bem como a de Rousseff e de Paschoal – o que foi utilizado como artifício linguístico de demarcação de quais espaços são aceitáveis para as mulheres.

As que estão na política, invasoras de espaço que são, marcamos como loucas. Na cultura patriarcal é esperado das mulheres que miremo-nos no exemplo daquelas outras, de Atenas, que como cantou Chico, não têm gosto ou vontade, defeito nem qualidade – têm medo, apenas.

Mas já há muito não tememos, e seguiremos nos articulando para que quem detenha poder institucional para definir nosso futuro não siga sendo somente o homem #branco, #abonado e #parlamentar.

O patriarcado sempre esteve na vantagem, por isso a luta feminista nunca parou – e por isso ela seguirá avante.

*Da Carta Capital

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