Catástrofe ambiental brasileira vira tema de debate nos EUA
Candidato democrata, Joe Biden ameaçou o país com “consequências econômicas significativas” caso não detenha a devastação na Amazônica. Em Cúpula da ONU, presidente francês disse que criminalidade ambiental de Bolsonaro e Salles impede acordo EU-Mercosul
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O desastre ambiental brasileiro virou tema do debate presidencial norte-americano. Na noite desta terça (29), enquanto se digladiava com o republicano Donald Trump, o democrata Joe Biden anunciou ao mundo que “as florestas tropicais no Brasil estão sendo destruídas”.
Ao acusar Trump de não usar sua influência para ajudar a defender a natureza, Biden anunciou seus planos para o Brasil: “Eu iria me juntar para garantir que países juntos tenham um pacote de US$ 20 bilhões: ‘Está aqui um pacote de US$ 20 bilhões para vocês pararem de desmantelar a floresta’. Se não fizerem isso, irão enfrentar consequências econômicas significativas”.
Em suas redes sociais, Bolsonaro chamou a declaração de Biden de “desastrosa e gratuita”. O presidente capacho de Trump que bate continência para a bandeira dos Estados Unidos teve um surto nacionalista e disse que a soberania do Brasil é “inegociável” – embora ressaltasse que uma parceria com os ianques é “bem-vinda”. Para Bolsonaro, o problema é Biden, que “sinaliza claramente abrir mão de uma convivência cordial e profícua”.
Algumas horas depois, a controvérsia se deslocou para a Cúpula da Organização das Nações Unidas (ONU) Sobre a Biodiversidade, onde o presidente francês, Emmanuel Macron, reforçou as críticas ao comportamento nocivo do governo brasileiro. Macron insistiu que a questão ecológica orienta sua posição sobre o acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia (UE).
“A UE não assinou o acordo comercial com o Mercosul por ele ameaçar aumentar o desmatamento”, disse. Macron ainda atacou o agronegócio, alertando que é “soja transgênica que nutre o desmatamento na Amazônia”.
“O ano de 2020 deve ser o ano da conscientização diante da pandemia”, pregou o líder francês, para quem parte da estratégia contra a devastação seria a ação coletiva contra a criminalidade ambiental. “Há muitos anos os especialistas nos alertam sobre o desmatamento e o risco de doenças. Não há como preservar direitos humanos sem preservar ecossistemas”, defendeu Macron.
Em discurso gravado e enviado para a Cúpula, que ocorre como parte dos eventos da 75ª Assembleia Geral das Nações Unidas, Bolsonaro afirmou – e como sempre, sem apresentar qualquer prova – que organizações, em parceria com “algumas ONGs”, comandam “crimes ambientais” no Brasil e também no exterior.
Essa não é a primeira vez que o presidente acusa terceiros para desviar a atenção sobre seus próprios crimes ambientais. Em agosto de 2019, ele declarou que ONGs poderiam estar por trás de queimadas na Região Amazônica para “chamar atenção” contra o governo. Na semana passada, no discurso mais afrontoso de um chefe de Estado brasileiro na abertura da Assembleia da ONU, disse que o país é “vítima” de uma campanha “brutal” de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal.
Bolsonaro tenta emplacar a narrativa de que as críticas cada vez mais incisivas – dentro e fora do país – fazem parte de um movimento internacional para desestabilizar o governo e partem, também, de países que têm interesse comercial em prejudicar o agronegócio brasileiro.
“Rechaço, de forma veemente, a cobiça internacional sobre a nossa Amazônia. E vamos defendê-la de ações e narrativas que agridam a interesses nacionais”, afirmou. “Em 2020, avançamos nessa direção e, mesmo enfrentando uma situação difícil e atípica devido ao coronavírus, reforçamos ações de vigilância sobre nossos biomas e fortalecemos nossos meios para combater a degradação dos ecossistemas, a sabotagem externa e a biopirataria”, complementou Bolsonaro.
Enquanto Bolsonaro insiste na falácia de que seu governo é “líder em conservação de florestas tropicais”, dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que até 26 de setembro deste ano já foram identificados 73.459 focos de calor só na Amazônia. É 12% a mais do que o registrado em todo o ano passado, que já havia tido o pior resultado em mais de uma década.
O maior aumento em 2020 é observado no Pantanal, onde foram detectados 16.667 focos. O número é mais que o triplo do balanço de 2019 (5.891). O cenário no Cerrado também choca: foram confirmados 42.921 mil focos de queimadas entre os meses de janeiro e setembro.
Dados do Inpe também mostram que, no primeiro ano de desgoverno Bolsonaro, a Amazônia Legal teve 10,9 mil quilômetros quadrados (km²) de área desmatada, o maior número desde 2008. Neste ano, a Amazônia Legal teve uma área de 1.359 km² sob alerta de desmatamento em agosto, a segunda maior em cinco anos – perdendo apenas para o mesmo mês do ano passado.
Boiada de Salles sofre revezes
Ansioso para bajular o chefe, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo “Boiada” Salles, ironizou a proposta do candidato democrata sobre a ajuda de US$ 20 bilhões (R$ 113 bilhões) para a Amazônia. “Só uma pergunta: a ajuda dos US$ 20 bilhões do Biden é por ano?”, perguntou em uma rede social. Mais cedo, afirmou que o valor apresentado por Biden é 40 vezes maior que o montante destinado ao Fundo Amazônia.
No entanto, Salles foi retirado da presidência do comitê orientador do Fundo Amazônia em maio deste ano pelo vice-presidente, general Hamilton Mourão. O colegiado havia sido extinto em abril do ano passado e o fundo ficou paralisado por ação direta do ministro especializado em “medidas infralegais” para desmontar todo o arcabouço legal sobre o meio ambiente, construído em anos de luta.
Além do mais, levantamento do Observatório do Clima apontou que o Ministério do Meio Ambiente gastou apenas R$ 105,4 mil nas ações orçamentárias diretas até 31 de agosto. O valor liquidado em oito meses equivale a 0,4% do orçamento autorizado para este ano.
Na terça, a Justiça Federal do Rio de Janeiro suspendeu decisões tomadas pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) na véspera, que retiraram a proteção de áreas de manguezais e de restingas. A juíza da 23ª Vara Federal Criminal, Maria Amelia Almeida Senos de Carvalho, acatou pedido de liminar contra as medidas do Conama, presidido por Salles, tendo em vista “evidente risco de danos irrecuperáveis ao meio ambiente”. Assim, deferiu “antecipação dos efeitos da tutela para suspender os efeitos da revogação apreciada na 135ª Reunião Ordinária do Conama”.
“As medidas de Ricardo Salles são uma afronta ao Artigo 225 da Constituição Federal, que define a preservação do meio ambiente. Ao revogar as preservações, entre outras maldades, estamos vendo uma afronta à Constituição. É preciso ampliar essa luta jurídica para revogar ainda outros itens. Aliás, a atual configuração do Conama é questionada na Justiça, porque não está cumprindo seu papel”, criticou Wagner Ribeiro, professor do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), em entrevista ao ‘Jornal Brasil Atual’.
Em maio de 2019, por meio de um decreto publicado pelo governo Bolsonaro, o Conama reduziu o número de conselheiros do órgão. De 96 participantes, entre membros de entidades públicas e de ONGs, agora são 23 membros. A sociedade civil contava com 22 assentos e hoje são apenas quatro. “É algo grave e tem como consequência a diminuição de vozes no debate ambiental. Ou seja, o governo apenas valida os interesses de setores empresariais”, criticou Wagner Ribeiro.
Em outro revés para Salles, a Comissão Temporária Externa de acompanhamento das ações de enfrentamento aos incêndios no Pantanal aprovou na quarta um convite ao ministro para ele esclarecer as medidas adotadas pelo governo para contenção e prevenção das queimadas. Por se tratar de convite, Salles não é obrigado a comparecer. Os parlamentares também aprovaram um convite para o diretor-geral do Serviço Florestal Brasileiro, Valdir Colatto, comparecer à comissão.
Os senadores também querem realizar uma audiência pública sobre as ações de enfrentamento às queimadas. O procurador-geral da República, Augusto Aras, será convidado para participar do evento ao lado do procurador-geral de Justiça do Mato Grosso, José Antônio Borges Pereira, e do procurador-geral de Justiça de Mato Grosso do Sul, Alexandre Magno Benites de Lacerda.
Violência contra indígenas mais que dobrou
Além da fauna e da flora, o primeiro ano do desgoverno Bolsonaro-Salles também foi marcado pelo aumento expressivo nos mais diversos tipos de violência contra povos indígenas. Ao todo, 113 indígenas foram assassinados no ano passado, segundo dados oficiais da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) obtidos pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Apesar de ser um pouco menor do que o número de homicídios de indígenas praticados no ano anterior (135), o registro de outros tipos de violências somou 276 casos em 2019, contra 110 em 2018 – crescimento de 150%. Foram notificadas 33 ameaças de morte, 34 ameaças várias, além de 20 homicídios culposos, 24 tentativas de assassinato, 10 casos de violência sexual, 13 casos de lesão corporal dolosa e 16 situações de racismo e discriminação étnico cultural.
O relatório anual ‘Violência Contra os Povos Indígenas’ foi apresentado pela entidade nesta quarta. Com base na Lei de Acesso à Informação, o Cimi também obteve do governo federal a informação de que houve 133 suicídios em todo o país em 2019 – 32 a mais que os casos registrados em 2018. Amazonas (59) e Mato Grosso do Sul (34) registraram as maiores quantidades de ocorrências.
Também houve aumento nos registros de mortalidade na infância (crianças de 0 a 5 anos), que saltaram de 591, em 2018, para 825 em 2019. Foram 248 casos no Amazonas, 133 em Roraima e 100 no Mato Grosso.
Além de cumprir a promessa de campanha de que não assinaria a demarcação de nenhuma nova terra indígena, o governo Bolsonaro retrocedeu em 27 procedimentos de regularização de novas áreas, que foram devolvidos pelo Ministério da Justiça (MJ) à Fundação Nacional do Índio (Funai).
Segundo atualização do Cimi, das 1.298 terras indígenas do Brasil, 829 (63%) apresentam alguma pendência para a finalização do seu processo demarcatório e o registro das terras em cartório. Destas 829, um total de 536 áreas não teve ainda nenhuma providência adotada pelo governo federal.
Como resultado da decisão política de congelar os processos de demarcação de terras indígenas, os conflitos por direitos territoriais mais do que triplicaram em 2019, com o registro de 35 ocorrências, contra 11 no ano anterior (2018).
As invasões de terras indígenas, associadas à exploração ilegal de seus recursos naturais, têm crescido de forma alarmante no país, alerta o Cimi. A entidade atribui o aumento à postura anti-indígena de Bolsonaro e Salles.
“O Cimi registrou no ano de 2019, 256 casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio, em pelo menos 151 terras indígenas, de 143 diferentes povos. Esse total é mais do que o dobro do número registrado em 2018, quando tivemos um total de 111 casos”, informa o relatório.
Da Redação