Com Ruas de Memória, Haddad faz reparação às vítimas da ditadura
Nomes da luta contra a ditadura militar no Brasil como Amelinha Teles reforçam importância da iniciativa. Projeto altera nomes de locais que homenageiam repressores
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Presa e torturada pela ditadura civil-militar (1964-1988), Maria Amélia de Almeida Teles, a Amelinha Teles é uma das mais relevantes militantes pelos direitos humanos no Brasil. Junto de sua família, foi responsável pela disputa judicial que terminou com o reconhecimento de que Carlos Alberto Brilhante Ustra foi um torturador.
Em 2008, o coronel foi o primeiro (e único) agente da repressão do país a ter esta denominação reconhecida pelo Estado. Quase duas décadas depois do fim do regime, ela diz sentir vergonha de passar por ruas e praças que tenham nomes de repressores. Para Amelinha, os torturadores têm que ser lembrados na página da verdade, e não em homenagens públicas.
“Para mim tem um significado muito grande porque somos comprometidos em erradicar a tortura no Brasil (…) é uma ofensa permanente, é um descuido com a nossa própria história. Houve e há uma história de resistência e de luta de um povo que quer liberdade, quer democracia e justiça”.
Na cidade de São Paulo, onde Amelinha foi presa e onde reside, há 38 logradouros associados à ditadura, dos quais 22 homenageiam ditadores, torturadores ou chefes dos serviços de segurança que serviram à repressão, de acordo com levantamento da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) da Prefeitura de São Paulo.
Na cidade de São Paulo há 38 logradouros associados à ditadura, dos quais 22 homenageiam ditadores, torturadores ou chefes dos serviços de segurança que serviram à repressão
“Eu morro de vergonha quando eu passo em um lugar e tem o nome de um torturador. Eu penso assim: como eu, que fui torturada, não tive uma manifestação tão forte e contundente a ponto de mudar este nome. Tira este nome… é ferir nossa dignidadade enquanto povo, enquanto nação, enquanto sociedade brasileira”, afirmou.
Ruas de Memória
Para mudar este cenário, a Coordenação de Direito à Memória e à Verdade da SMDHC lançou, em 2015, o programa Ruas de Memória. Seu objetivo é alterar nomes de ruas, pontes, viadutos, praças e outros logradouros públicos que homenageiam repressores. Não menos importante é ressignificar estes lugares com o nome de pessoas que lutaram pelo fim da tortura e pela democracia.
Retirar nomes da repressão pode parecer meramente uma atitude simbólica, mas é uma maneira de tornar as cidades mais democráticas, afirma a coordenadora-adjunta da Coordenação da Memória e Verdade, Clara Castellano.
“O Ruas de Memória parte da concepção de justiça de transição de que todos os países que passaram por governos autoritários e que fizeram a transição para democracia tiveram que rever suas estruturas para realmente implementar uma democracia efetiva”, disse.
“Um dos pilares da Justiça de transição é o direito à memória e à verdade, que significa deixar de conhecimento público, na sociedade, a verdade histórica sobre fatos, sobre violações de direitos humanos, crimes cometidos pelo Estado naquele período, e também rever as homenagens, os símbolos, tudo que compõe a memória coletiva do país”, afirmou, em entrevista à Agência PT de Notícias.
A ideia principal é que agentes do Estado que praticaram violações de direitos humanos não sejam tratados como heróis nos espaços públicos. Para o ex-preso político Anivaldo Padilha, esta política reflete o esforço de recuperação da memória histórica do Brasil.
Ele lembra que, a ditadura, que durou 21 anos, derrubou um presidente legitimamente eleito e estabeleceu a tortura como política de Estado.
“Houve um Estado de terror no Brasil, com a tortura não só como método de interrogatório, como foi usada para aterrorizar a população”. Com a redemocratização, as vítimas se empenharam em provar que as violações de direitos humanos aconteceram de maneira sistemática, e que não foram uma exceção. “Ao mesmo tempo, várias figuras importantes da ditadura foram homenageadas, pessoas que deviam ter sido processadas”, disse.
Para Padilha, a substituição dos nomes pelo de pessoas que lutaram pelo fim da ditadura é uma forma de firmar um compromisso com a democracia na sociedade brasileira.
“Por que a gente ainda tem pessoas que defendem a ditadura? Porque o Brasil nunca se reconciliou com este passado (…) O fato de torturadores não terem sido nem julgados, nem punidos, deu margem para que pessoas como Bolsonaro possam se sentir livres para defender a ditadura, como se tivesse sido algo positivo”.
Clara explica que, mesmo com as alterações, as correspondências continuarão chegando, pois o CEP é utilizado para encontrar os endereços, e não o nome do logradouro. Ela conta que, inicialmente, muitas pessoas se mostram resistentes ao programa porque desconhecem a história da ditadura no Brasil. É por esta razão que o Ruas de Memória propõe diálogos com os moradores dos locais que carregam estes nomes.
“A gente fez uma diálogo na rua Fleury, um dos maiores torturadores, responsável pelas mais graves violações de direitos humanos da cidade de São Paulo. No começo, as pessoas mostraram resistência, mas quando a gente leva o debate para a rua, com a sociedade, muita gente é tocada e se sente mobilizada e passar a pensar sobre estes assuntos”.
A primeira mobilização aconteceu em maio de 2015, na rua Golbery do Couto e Silva, no Grajaú, com intervenções artísticas de coletivos e saraus da zona sul. O projeto de lei que propõe mudar o nome desta rua para padre Giuseppe Pegoraro está em tramitação na Câmara. O repressor homenageado foi chefe do Serviço Nacional da Informações (SNI).
Outra mobilização aconteceu na Rua Henning Boilesen. “Tem gente que conta que sabe o que foi a ditadura pelas ações que a gente está fazendo”, disse Clara.
Tramita também na Câmara a proibição de novas nomeações que homenageiem responsáveis por violações aos direitos humanos e o projeto para alterar o nome do Viaduto 31 de Março para Viaduto Therezinha Zerbini, referência na luta das mulheres pela anistia.
Repressão em São Paulo
É importante ter uma política pública como esta em São Paulo, já que a cidade foi o “centro do recrudescimento da repressão, onde se iniciou o período mais sombrio, de mais perseguições e assassinatos”, avalia Clara.
São Paulo é também o município onde foi criada a vala clandestina de Perus, no cemitério Dom Bosco. Lá foram encontradas 1.049 ossadas de indigentes, presos políticos e vítimas dos esquadrões da morte. “São Paulo não pode ficar fora desta luta pela memória, pela verdade e pela justiça. A cidade de São Paulo deve a este povo que lutou contra a ditadura. Tem uma dívida e está na hora de começar a recuperar esta memória”, reforça Amelinha.
É a cidade, recorda Amelinha, onde foi criado o primeiro centro de tortura e extermínio do país, a Operação Bandeirante (OBAN). “Sob o comando do Exército, reuniu forças diversas e isto deu tão certo que foi transformado em Doi-Codi e se ampliou por todo o território nacional. São Paulo tem uma história muito pesada na repressão”.
Aprovada pela Câmara em junho, a alteração do nome do Elevado Costa e Silva para Elevado João Goulart é significativa. A coordenadora-adjunta reforça que a própria construção daquela via se relaciona com a ditadura e com uma concepção da cidade que afasta as pessoas.
“Uma obra gigantesca de concreto que cortou o centro da cidade, trouxe muitos danos para a população que circulava ali. Uma obra gigante, com custo altíssimo e que foi feita só para carros, nem ônibus passa ali”. Recebeu o nome do ditador que assinou o Ato Institucional nº 5 (AI 5), que marcou o início do momento mais duro do regime.
Padilha acredita que trocar o nome do Elevado é uma maneira de mostrar que a cidade de São Paulo não aceita ter o nome do repressor que aprovou o AI 5. “Foi o que estabeleceu de forma sistemática o terror na sociedade brasileira. Seu nome vai ser substituído pelo de um presidente que estava lutando por reformas democráticas no Brasil”, afirmou.
Amelinha lembra que é a cidade onde atuou Ustra. “Ele é responsável por 70 mortes aqui, no Doi-Codi. Foram mortos 70 militantes pelo coronel”.
Em dezembro de 2014, a cidade de São Paulo ganhou um monumento em homenagem aos mortos e desaparecidos durante os 21 anos de regime militar, que está instalado na entrada do Parque Ibirapuera, na zona sul.
Com seis metros de altura por 12 metros de cumprimento, a obra desenhada pelo arquiteto Ricardo Ohtake é formada por chapas brancas e uniformes com os nomes de 436 pessoas de todo o país vítimas da ditadura. Outras chapas disformes representam as diferentes trajetórias dos resistentes.
Da Redação da Agência PT de Notícias