Completando 30 anos, Constituição foi sequestrada pelo golpe
A essência inclusiva e progressista da Carta de 88 nunca foi plenamente assimilada pelas elites, mas desde o golpe os direitos passaram a ser caçados
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Aos 30 anos de sua promulgação, completados nesta sexta-feira (5), a Constituição Federal está sequestrada. A essência progressista e inclusiva da Carta de 1988 nunca foi plenamente assimilada pelas elites brasileiras, mas desde o golpe de 2016, os ataques, antes localizados, passaram a atingir os fundamentos do texto constitucional.
Os direitos sociais são o alvo principal. Eles estão consagrados no artigo 6º da Constituição: educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados.
“Tenho muito orgulho de dizer que participei ativamente da criação da nossa Constituição”, recorda o senador Paulo Paim (PT-RS), que foi deputado constituinte e trabalhou ativamente na construção do Capítulo da Ordem Social — talvez o mais ameaçado, na atualidade, mas considerado um exemplo para o mundo.
Constituição mutilada
Entre as lembranças da Assembleia Nacional Constituinte que Paim guarda com mais carinho está a convivência com grandes líderes políticos, como o deputado Ulysses Guimarães, que presidia os trabalhos, e o futuro presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva.
“Se Ulysses estivesse aqui, ele não estaria contente, não. Estaria revoltado vendo a forma como a Constituição Cidadã está sendo mutilada”, lamenta o senador. “A emenda do teto dos gastos é um exemplo de como está sendo atacada a Constituição”.
Veja abaixo o discurso de promulgação da Constituição de 1988
Reforma trabalhista
Outra mutilação grave da Carta de 88, ressalta Paim, é a reforma trabalhista, aprovada a toque de caixa por Temer.
Feita por meio de lei ordinária, a reforma trabalhista não mudou o texto constitucional, mas relativizou direitos inscritos na Constituição, admitindo modalidades de contratação onde essas conquistas passam a ser facultativas.
“Nossa Constituição foi obra da força, da coragem de líderes, mas, principalmente, do povo brasileiro, como assim foi a CLT”, recorda o senador.
Direitos relativizados
O Capítulo da Ordem Social da Constituição de 1988 consagra os direitos ao seguro-desemprego, o fundo de garantia por tempo de serviço, remuneração nunca inferior ao valor do salário mínimo, 13º salário, jornada de oito horas diárias, repouso semanal remunerado, férias anuais remuneradas e licença maternidade, entre outras conquistas.
Os vínculos precários de contratação que passaram a ser admitidos após a aprovação da reforma trabalhista fazem letra morta de todas essas garantias, transformadas em miragem para quem terá que se submeter às contratações temporárias, jornadas intermitentes e outras formas injustas de relações trabalhistas.
“A aprovação do fim da mão-de-obra temporária, um verdadeiro câncer no meio da classe trabalhadora, foi uma das vitórias que obtivemos na Constituinte”, registra Paim.
Estado de sítio
Como desacato à essência da Constituição Cidadã, a relativização dos direitos trabalhistas só encontra dano à altura no congelamento de todos os investimentos públicos na área social pelas próximas duas décadas, conforme determinado na Emenda Constitucional 95.
A EC 95, derivada da chamada “PEC da Morte”, foi a primeira grande iniciativa de Temer logo após o golpe de 2016 ser sacramentado. Sua aprovação pelo Congresso, no final de 2016, “equivale à decretação de um estado de sítio fiscal”, como já alertava a procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, Élida Graziane, ainda durante a tramitação da proposta.
Em audiência pública no Senado, Graziane advertiu que esse congelamento representaria, na prática, a suspensão de direitos fundamentais garantidos na Constituição, como a saúde e a educação, o que equivale ao estado de sítio, a suspensão das garantias individuais.
Direitos sociais
A construção de uma “sociedade livre, justa e solidária”, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais são, segundo a Constituição e 1988, “objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil”.
A turma de Temer, porém, parece ter lido outra coisa. Os direitos sociais definidos no artigo 6º da Constituição Cidadã têm sido alvo permanente do bombardeio conservador desde o golpe de 2016.
Cortes na Educação
Por exemplo, a Educação. O primeiro direito social definido na Carta de 88 vai perder R$ 321 bilhões de Orçamento nos próximos anos, graças à EC 95 patrocinada por Temer e aliados.
É um retrocesso abissal que pode ser medido na penúria enfrentada pelas universidades públicas — o incêndio que o consumiu o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, administrado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é o exemplo mais feroz, mas não o único.
Os governos Lula e Dilma aumentaram o orçamento da Educação em 206%. Mas desde o golpe de 2016 os recursos minguam. Além disso, o País perdeu programas como o Ciência sem Fronteiras, que levava jovens para estudar nas melhores universidades do mundo, e o Pronatec, voltado para a educação profissionalizante, que chegou a ter 9,4 milhões de matrículas.
Proteção à infância
Fundamental para garantir o direito de proteção à infância, o programa Brasil Carinhoso, lançado por Dilma em 2012, foi destruído. Nos três primeiros anos de funcionamento, a iniciativa permitiu a construção de 2.940 novas creches, mais 2.093 em construção e 3.167 contratadas.
Em 2014, por exemplo, o investimento do Brasil Carinhoso foi de R$ 642 milhões. Em 2018, de apenas R$ 6,5 milhões, ou cerca de 1% do total gasto naquele ano.
Cortes na Saúde
A devastação na Saúde é similar. Basta ver o Orçamento do setor para 2019, quando a área terá R$ 9,5 bilhões a menos do que este ano.
Programas como o Farmácia Popular, criado no governo Lula, já foram desmontados e o País convive com sintomas cruéis da redução do dinheiro destinado à Saúde, como provam o crescimento da mortalidade infantil e a queda nos índices de vacinação.
Se a EC 95 não estivesse em vigor, o mínimo obrigatório a ser investido na Saúde em 2019 seria de R$ 127 bilhões. O Orçamento de Temer prevê apenas R$ 117,5 bilhões para o ano que vem.
Crise e desemprego
Assim como a Saúde e a Educação, os demais direitos sociais consagrados na Constituição Cidadã estão sendo duramente golpeados.
O direito à alimentação está sendo negado a pelo menos 1,2 milhões de famílias que perderam o Bolsa Família desde 2016.
O direito ao trabalho é sonegado a pelo menos 13 milhões de brasileiros, arrastados pela crise econômica que só se aprofunda com a política de “austericídio” tão defendida pelos setores conservadores — convém lembrar que o Brasil experimentou o pleno emprego, com a taxa de desemprego 4,3% registrada no final do primeiro governo Dilma.
O direito à moradia sofre com desmonte do Minha Casa, Minha Vida (MCMV), que beneficiou 6,8 milhões de brasileiros e brasileiras.
O programa, que também era importante gerador de empregos e na movimentação da economia, contará com apenas R$ 4,6 bilhões no Orçamento de 2019, o menor volume de recursos de sua história, iniciada em 2009. Antes do golpe, a média orçamentária do MCMV era de R$ 43 bilhões ao ano.
“Traidor da pátria”
Nos 30 anos da Constituição que encheu o País de esperanças, não há muito o que comemorar, exceto a disposição de tantos brasileiros e brasileiras de resgatar o que está assegurado pela Carta Cidadã.
“A Constituição certamente não é perfeita”, ponderava Ulysses Guimarães, lembrando que o próprio texto previa a possibilidade de mudanças. Mas fazia um alerta: “Afrontá-la, nunca”. Para Ulysses, “traidor da Constituição é traidor da Pátria”.