Conceição Evaristo: “Não leiam só minha biografia. Leiam meus textos”
Escritora consagrada fala sobre militância, conquistas históricas e o preconceito contra autores e autoras negras
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“Antes de lerem nossos textos já fazem um pré-julgamento, ou dizem que a autoria negra é uma autoria de militância. Mas é preciso conhecer os textos. Peço muito para as pessoas que não leiam apenas minha biografia, porque ela é importante sim, porque ela contamina meu texto, mas por favor leiam meu texto”.
O convite vem da escritora Conceição Evaristo (71), uma voz forte dentro da comunidade negra brasileira e uma autora consagrada mundo afora, que cada vez ganha mais prestígio. Segundo ela, em entrevista ao Brasil de Fato, a leitura da obra de uma escritora negra tem que começar a partir também de suas qualidades literárias e artísticas.
“O racismo que permeia as instituições brasileiras é muito cruel. “Estão no imaginário do brasileiro algumas competências para o sujeito negro. Acredita-se que ele saiba dançar, cantar, e principalmente no caso das mulheres, cozinhar. Mas as competências intelectuais, principalmente as literárias, não. Quando se trata da literatura, talvez porque ela use o maior bem simbólico da nação que é a língua, essa escrita negra não é acreditada”, protesta.
Perto de completar 72 anos, no próximo dia 29, Conceição Evaristo traça um panorama sobre as barreiras impostas aos escritores e escritoras negras. “Grande parte dos escritores negros nasce dos estratos populares, então você vê que na maioria das vezes não temos padrinho. Ou então quando conseguimos, com muita dificuldade publicar, antes de lerem nossos textos já criticam, e aí a literatura sim, há escritores brancos que escrevem muito bem, e escritores brancos que não escrevem bem. O mesmo com os negros. Mas não nós é permitida nenhuma falha”, disse.
No ano passado, a autora apresentou sua candidatura à cadeira número sete da Academia Brasileira de Letras o que gerou um gigantesca campanha de apoio nas redes sociais, mas teve sua candidatura rejeitada em favor do cineasta Cacá Diegues. Confira abaixo o que Conceição tem a dizer sobre si, sua obra, a história do movimento negro, a conquista das ações afirmativas e a importância do Dia da Consciência Negra.
Brasil de Fato: Na literatura existem, atualmente, poucos autores negros, apesar de o país ter uma rica história de cultura negra e de afrodescendentes com histórias de vida fantástica. Por que há essa dificuldade em se vender a literatura negra no Brasil?
Conceição Evaristo: O racismo que permeia as instituições brasileiras é muito cruel. Fica no imaginário do brasileiro algumas competências para o sujeito negro, acredita-se que ele saiba dançar, cantar, principalmente no caso das mulheres, cozinhar, mas acredita-se que as competências intelectuais, principalmente as literárias, não. Não se tem dificuldade em conhecer uma música negra brasileira, ou reconhecer que as culturas africanas influenciaram a música brasileira. Ou a culinária negra.
Mas quando se trata da literatura, talvez porque ela use o maior bem simbólico da nação que é a língua, essa escrita negra não é acreditada. Grande parte dos escritores negros nasce dos estratos populares e você vê que na maioria das vezes não temos padrinho. Ou quando conseguimos, com muita dificuldade, publicar, antes de lerem nossos textos já criticam. Há escritores brancos que escrevem muito bem, e escritores brancos que não escrevem bem. O mesmo com os negros. Mas não nós é permitida nenhuma falha.
Assim, antes de lerem nossos textos já fazem um pré-julgamento, ou dizem que a autoria negra é uma autoria de militância. Mas é preciso conhecer os textos. Peço muito para as pessoas que não leiam apenas minha biografia, porque ela é importante sim, porque ela contamina meu texto, mas por favor leiam meu texto. Eu tive a felicidade desse texto convocar brancos, negros, homens, mulheres, brasileiros, estrangeiros. Por exemplo, meu livro de poemas, Poemas de Recordação e Outros Movimentos está sendo publicado por uma editora francesa, que é a mesma que publica Clarice Lispector. Os meus livros Ponciá Vicêncio e Beco da Memória já foram traduzidos para francês e agora serão traduzidos para árabe. Mas eu custei muito. A minha literatura aparece primeiro fora do Brasil do que no Brasil. Mas acho que isso tudo faz parte desse imaginário, desse preconceito e racismo que vigoram na sociedade brasileira.
Como se dá a influência da questão racial na sua literatura?
Tudo que escrevo, tanto do ponto de vista literário, quanto [meus] ensaios e pesquisas, são profundamente marcados pela minha condição de mulher negra na sociedade brasileira. Então eu procuro trazer no meu texto personagens, homens, mulheres, crianças, ambientes, posturas de vida, acontecimentos praticamente relacionados com a minha experiência enquanto mulher negra, nesse ambiente de corpos africanos escravizados no Brasil. Há toda uma herança histórica do povo negro presente no meu texto como memória, retomando alguns fatos, ou como acontecimentos do cotidiano.
Como foi a sua infância? Qual era a sua percepção de racismo naquela época?
A minha infância foi a de uma família que tinha uma consciência sobre a questão racial. Não era elaborada em termos teóricos, mas a própria contação de história sobre a escravidão, a prepotência dos brancos sobre os sujeitos escravizados, isso já era indicativo, um conhecimento. Eu cresço em Belo Horizonte, vou estudar em uma escola pública mas de classe média, que atingia um bairro de classe média e média alta, e minha mãe nos matricula nesta escola, a Escola Barão de Rio Branco, porque já naquela época mostrava um estudo diferenciado quando se analisava a clientela. Na favela onde eu morava tinham duas escolas, mas eram escolas que deixavam a desejar. Minha mãe sabia que faltavam professores, percebia uma certa indisciplina na porta da escola, então minha mãe nos matriculou lá. Essa experiência nessa escola marca a minha percepção cruel do racismo e da condição racial, porque era uma escola de dois andares, e no segundo andar estudavam os meninos ricos e ricos – ainda mais naquela época -, era sinônimo de brancos. Nos porões da escola estudavam os alunos pobres, também dá para colocar o sinal de igualdade. Alguma outra criança rica estudava nas classes do porões, mas a maioria era de negras e pobres. Tem até um texto em que eu uso uma expressão “porões do navio, porões da escola”. Então minha infância já foi marcada por essa experiência da questão racial, mas nunca foi elaborada.
E como foi na adolescência?
Na juventude eu conheço alguns movimentos negros de Belo Horizonte, tinha um movimento que era organizado por uma família negra e as reuniões aconteciam na casa deles. Tinha a Associação do José do Patrocínio, que também era um grupo que pensava a questão racial. Isso na minha juventude. Tive a felicidade de ter um tio, Catarino Evaristo, que tinha sido soldado e quando voltou da Segunda Guerra, teve a oportunidade de estudar e foi uma pessoa muito antenada. Tenho a impressão que pelas coisas que ele me falava, pela quantidade de livros, provavelmente ele acompanhava a luta dos negros americanos e o movimento da negritude que nasce na Europa com estudantes africanos que depois voltam para a África. Hoje, analisando as coisas que ele me dizia, dá para perceber. Aí eu venho para o Rio de Janeiro em 1973, faço concurso para magistério, em 1976 eu entro na Faculdade de Letras, a quantidade de alunos negros era bem pouca, e nas relações interpessoais com colegas não percebi muita coisa não, mas havia um tratamento diferenciado dos professores. Alguns professores não tinham muita receptividade com alunos negros, mesmo se tratando de um curso superior. Bem típico da conduta brasileira em determinados espaços, em que não se pode dizer verbalmente, mas o olhar das pessoas brancas atravessam as pessoas negras.
E não havia vontade política do Estado e dos governos de discutirem essas questões, não?
As questões raciais eram discutidas sim, mas a partir da percepção dos ditadores brancos, com a afirmação da democracia racial, essa perspectiva que vai se discutir ainda na esteira de [Gilberto] Freyre [sociólogo, autor de Casa Grande & Senzala]. Então havia já intelectuais de classe média, brancos, que apontavam na direção dessa democracia racial no Brasil. No final dos anos 1970 é quando o movimento social negro, com toda a veemência, vai denunciar a falácia desse discurso.
Isso, em 1978, com os grandes encontros, o Movimento Negro Unificado… Você participou desse período? Como foi esse levante do movimento negro no país?
É, no final dos anos 1970, há uma grande efervescência das pessoas no Rio de Janeiro, assisto a fundação do IPCN, o Instituto das Pesquisas das Culturas Negras, conheço vários militantes que foram fundamentais na formação desse movimento, conheço Lélia Gonzales, uma intelectual negra importantíssima e uma das fundadoras do MNU. Em 1981, eu estava casada, e minha filha nasce com problemas de saúde e eu me afasto um pouco até mais ou menos 1987. E eu participo na medida em que é possível, não mais tão ativamente. Há uns dias eu estava em uma reunião e alguém estava lembrando do meu marido, que estava vivo na época, ele com minha filha nas costas, e eu, em uma marcha do centenário da abolição, que foi chamada de Marcha de Zumbi contra o Racismo, que aconteceu na Avenida Rio Branco, no Rio da Janeiro, em 1988. E o movimento negro percorreu a avenida, cercado pela polícia pelos dois lados. Essa marcha foi crucial, inclusive havia um slogan que a gente cantava ao longo da marcha, “policial negro também é discriminado”, algo assim. Nós fizemos essa manifestação correndo todos os riscos.
Essa marcha foi em 1988, o centenário da abolição, que também foi o ano da Constituição. Você acredita que a Constituinte brasileira teve uma perspectiva racial ou ficou aquém do que se imaginava?
O ano de 1988 teve também uma participação do movimento negro, até pela comemoração do centenário da Lei Áurea. Então algumas lideranças do movimento negro participaram sim da Constituinte. Foi um momento fértil que, de certa forma, abriu certa perspectiva, possibilitou cada vez mais essa discussão, encampada pelos sujeitos negros, isso que é importante. Então foi sob a nossa perspectiva que se discutia a questão racial no Brasil.
Na época surgiu também a luta pelas políticas afirmativas, uma das questões mais importantes do movimento racial. Como a senhora observa isso, e também, depois de um período de estabelecimento das cotas, você percebe que a política foi importante para a produção acadêmica?
Vale observar que, na verdade, essa discussão sobre cotas, algumas pessoas desconhecem um outro momento histórico que foi muito importante, e que na verdade, vem antes da discussão de cotas. Temos que voltar nos anos 1940, com o Teatro Experimental do Negro, de Abdias do Nascimento, cujos manifestos elaborados colocavam duas questões que vão, a longo do tempo, tanto gerar as ações afirmativas, como cotas, mas também vão instalar a semente da Lei 10/639. Isso porque em 1945, um dos manifestos do Teatro Experimental do Negro, reconhecia que o Estado brasileiro teria que dar bolsas de estudos para filhos de descendentes de africanos que quisessem estudar e não tivessem condição. Ora, nós estamos falando dos anos 1940. Quando o Teatro, em um de seus propósitos, demanda do governo essas bolsas, sem sombra de dúvida, isso vai ampliando até dar nas ações afirmativas. Neste mesmo período havia já a demanda e a crítica ao sistema escolar, dizendo da necessidade de se estudar as culturas africanas, as culturas dos povos que tinham vindo para o Brasil. Isso está documentado no material do teatro.
A primeira demanda foi justamente ampliando ao longo da história até que chegaram as cotas. E a outra demanda, vai sendo ampliada e aprofundada também, caminhando com a Lei 10/639, que institui o estudo das culturas africanas e afro-brasileiras no currículo escolar, nas escolas públicas e privadas, em primeiro e segundo grau. Depois a lei é ampliada para incluir também as culturas indígenas. A gente tem que afirmar isso porque temos um slogan, principalmente no movimento de mulheres negras, dizendo que “nossos passos vêm de longe”. O que aconteceu no governo Lula, as questões afirmativas começam a ser discutidas ainda no FHC, mas é realmente no primeiro governo Lula que temos o aprofundamento. A ponto de gerar a lei e instituir.
Então, temos demandas populares que nascem e são vinculadas aos movimentos sociais, e quando se tem governos sensíveis a essas demandas, elas são efetivadas em termos de lei. Mas nenhuma demanda, ou nenhum ato nasce do nada. Há um longo período de amadurecimento, de reivindicação, de lideranças de movimentos sociais participando das conferências, tanto nacionais quanto internacionais, da ONU por exemplo, acompanhando essas discussões. Nessas conferências os países assumem compromissos para determinadas questões, e daí o movimento social, quando volta, pode questionar e cobrar dos governos. As conquistas populares não caem de cima para baixo, como as pessoas pensam, são fruto de demandas populares.
Em São Paulo, a cultura jovem do negro encontra outros suportes, consegue espaços e público em várias configurações. Tem muitos saraus em São Paulo, a cultura Hip Hop. Você acompanha isso, acha que os jovens negros conseguem produzir cultura em outras plataformas?
Conheço e gosto muito, é uma juventude muito aguerrida, muito corajosa. Eu não sei como é em São Paulo, mas no Rio de Janeiro, por exemplo, quem está produzindo cultura com efervescência não é Zona Sul, é a periferia, esses saraus, que assim como em São Paulo reúnem muitas pessoas. Os rappers, os festivais de slam. Essa movimentação cultural que abarca um número maior de participantes e pessoas, sendo muito mais democrática pela representação dela, porque nela cabe todo mundo. Se um jovem da Zona Sul do Rio de Janeiro quiser ir assistir um sarau desses ele será muito bem aceito. Não sei se um jovem que sai da periferia do RJ, se chegar à Zona Sul para ir ao teatro, terá o mesmo tratamento. Mas o espaço da periferia na produção de cultura, tem sido muito mais amplo, democrático, convocatório, e você vai ver que se faz com muito dinheiro ou com nada. Com nada, porque muito dessas publicações são alternativas, publicações quase artesanais, e a moçada está tocando.
A senhora foi candidata nesta ano a uma vaga na Academia Brasileira de Letras e infelizmente não foi eleita. O que representaria ter uma autora negra em uma casa que foi criada por um autor negro, um dos mais importantes da nossa literatura [Machado de Assis] e deveria, por representar a literatura brasileira, ser mais engajada?
A ABL, como muitas instituições brasileiras, tem o perfil da sociedade brasileira. Uma sociedade que provoca suas exclusões. Acho que o mais importante é a gente se valer, as escritoras e escritores negros, desses direitos. No estatuto da Academia está colocado que a primeira exigência para participar é que seja brasileiro, todo brasileiro que tiver um livro publicado tem sua candidatura permitida. Ora, eu sou brasileira, com seis livros publicados e com publicações no estrangeiro.
Agora, neste ano, a prova do ENEM abre com trechos de meus poemas, também três livros meus passaram no edital do Programa Nacional do Livro. Então, de acordo com o Estatuto da Academia, nada me impede, como não impede vários outros escritores negros. Qualquer um de nós, homens ou mulheres, podemos participar, se candidatar. Acho que o que me era de direito eu fiz, que foi a candidatura.
Quem decide as regras do jogo são os acadêmicos. E para mim, a carta de apresentação é a obra. Eu não tive realmente tempo de falar com todos os acadêmicos, falei com pouquíssimos, não encontrei pessoalmente com nenhum, com alguns que tentei não senti muita receptividade. Mas a candidatura, como escritora brasileira, foi um direito meu como qualquer outro escritor ou escritora brasileira. Agora, as regras do jogo, eles falam, que a academia é um clube, e quem decide quem entra no clube ainda é da competência deles. Talvez julgassem por A ou por B, e não pela pessoa que deveria fazer parte desse clube, como eles mesmo falam.
Qual o grande mérito do Dia da Consciência Negra desse dia e o que ele traz de relevante para a sociedade como um todo?
Acho que o Dia da Consciência Negra, 20 de novembro, que nasce no Rio Grande do Sul com um grupo de poetas negros, dentre os quais Oliveira Silveira, que nasce como Dia do Zumbi e ganha esse nome no Rio de Janeiro, quando na véspera do dia, em reunião no IPCN, Paulo Roberto, um dos militantes, escreve: “Amanhã é o dia da consciência negra”. Então esse nome foi sendo divulgado. Acho que o grande mérito foi levar à sociedade brasileira um dia provocativo. Nós negros, militantes, sabemos muito bem o significado do dia. Agora, pelo fato de ter se tornado um feriado, de todo mundo falar, brancos e negros, se tornou um dia que coloca para o brasileiro curioso, racista ou não, ou talvez o racista mas o racista que, mesmo que ache desnecessário o dia, é obrigado a pensar. Pode até não reconhecer o racismo dele, mas sabe que a problemática está colocada. Então não é um dia só de festejo, ele marca também a colocação de uma problemática para a sociedade brasileira pensar, não só nós negros. E coloca também Zumbi, inclusive, no panteão dos heróis brasileiros, como foi Tiradentes, Frei Caneca e João Cândido.
Por Brasil de Fato