Democracia em Vertigem expõe as muitas feridas do golpe no Brasil

Filme da cineasta Petra Costa entrou no catálogo da Netflix nesta semana. “É muito nítida a feição dessa história”, disse Caetano Veloso

Vasta documentação histórica aliada às portas abertas do Palácio da Alvorada compõem o documentário Democracia em Vertigem, da cineasta Petra Costa. O longa chegou nesta semana ao catálogo da Netflix para deixar mais um registro definitivo sobre o atual contexto político brasileiro. Petra conta com sensibilidade pontos essenciais da história recente que levaram o país a um processo de golpe (contra Dilma Rousseff, em 2016) que levou à ascensão da extrema-direita – com a ajuda da classe média alta do país, na qual a diretora se inclui em sua narrativa.

Democracia em Vertigem entra para o panteão daqueles que se dedicam a contar a história do país, ao lado de extensa produção literária e mesmo audiovisual, como a obra par O Processo (2018), da documentarista Maria Augusta Ramos. Estão ali, explícitos para o público, momentos históricos como a conversa do então senador Romero Jucá (MDB-RR) com o ex-presidente da estatal Transpetro Sergio Machado: “A solução é botar o Michel (…) Num grande acordo nacional, com o Supremo e com tudo”. Petra faz questão de repetir a fala, como que em um desabafo particular, indignada.

O grande seriado de drama, com toques de terror (tudo muito bem televisionado, espetacularizado), que se transformou a política nacional, explode em seu mais novo capítulo com o escândalo da “Vaza Jato“. Mesmo não entrando no documentário, os fatos se conversam. No documentário, Petra apresenta a forma como a Justiça, por intermédio da Operação Lava Jato, com os procuradores do Ministério Público de Curitiba e o então juiz Sergio Moro, tratou o processo contra o ex-presidente Lula.

Provas? Não foram necessárias. Bastaram convicções e um conluio entre juiz e promotores com a finalidade de prender Lula para impedi-lo de concorrer às eleições do ano passado. Foi a continuidade do golpe. “Qual o sentido de tirarem a Dilma se eu voltar?”, questiona o ex-presidente.

“A história foi ficando cada vez mais surreal, com pontos de virada inimagináveis”, disse a cineasta em evento de lançamento do documentário em São Paulo, na quarta-feira (19). “As viradas continuam”, afirmou, em referência aos novos fatos que comprovam a relação promíscua entre Moro e procuradores (vazamento de diálogos pelo The Intercept Brasil). Durante o lançamento, Petra foi questionada, inclusive, se seria cabível a produção de uma continuação do longa. E encarou a possibilidade com bom humor, sem sentenciar sim nem não.

Reações

Petra tem 35 anos, praticamente a mesma idade da democracia brasileira após o fim da ditadura civil-militar (1964-1985), como observa no filme. Aos 28 anos, filmou ELENA (2012), que ganhou prêmios de Melhor Documentário pelo Júri Popular, Melhor Direção, Montagem e Direção de Arte no Festival de Brasília. O documentário se impôs a Petra como um meio de enfrentamento à dor da morte da irmã. Segundo ela, uma dor tão forte quanto a vivida nos dias atuais, ante o sangramento da utopia democrática – um roteiro que também se obrigou a contar.

A mensagem de Democracia em Vertigem é clara: tão jovem democracia em tão grave risco. Não foram poucos os relatos de expectadores que caíram nas lágrimas durante o longa. “Fiquei muito emocionado. Chorei pouco, não como ela”, disse o músico Caetano Veloso, que assistiu em sua casa, ao lado da apresentadora e atriz Mônica Iozzi, que ficou muito abalada. “É difícil não chorar nada. Tem a perspectiva dela e a histórica, tem os pais dela. A série de coisas é muito nítida a feição dessa história”, completou Caetano.

O ponto de vista da cineasta é muito presente na obra. Inclusive a crítica frequentemente cobrada do PT, de ter – apesar de ter realizado gestões inclusivas e que levaram a uma taxa elevada de aprovação de Lula, acima de 80% –, falhado no plano ético ao sucumbir aos antigos mecanismos de financiamento de campanhas.

Narrado em primeira pessoa, o documentário trata da família de Petra. Seu avô, empreiteiro fundador da Andrade Gutierrez. Seus pais, ativistas comunistas perseguidos pela ditadura. Uma família de contrastes. Em um desabafo, ela lamenta que parte de seus familiares apoiaram o presidente de extrema-direita, Jair Bolsonaro (PSL) – que não esconde seu desejo de que gente como os pais de Petra estivesse mortos após tortura, simplesmente por pensar de outra forma.

Um dos pontos de virada mais importantes da linha narrativa, como não poderia ser diferente, é a votação da aceitação do impeachment na Câmara dos Deputados, em abril de 2016, quando os deputados votaram por Deus, pela família, pela avó, por estradas, por igrejas, contra Dilma. Sobre o porquê da cassação de seu mandato? Nada. Apenas a oposição desesperada com o absurdo. O maior deles veio justamente com Bolsonaro. Deputado federal à época, dedicou seu voto ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador militar reconhecido pela Justiça, inclusive de Dilma Rousseff, quando ela era uma jovem ativista.

Perplexo, o ex-deputado Jean Wyllys (Psol-RJ) – que atualmente está exilado, após ameaças contra sua vida vindas de grupos bolsonaristas – falou em suas redes sociais sobre o documentário. “É impressionante como a Petra conseguiu traçar um elo entre nosso passado recente e nosso passado mais distante. E mostrar o que restou do passado distante de mais infeccioso, a ponto de infectar nossa democracia. Petra se implica na história, conta uma história que é dela e também nossa. Eu, envolvido nos fatos, ao vê-los de fora do país, me doeu muito”, disse.

Muitos outros pontos históricos estão lá: a resistência de Lula no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC antes da prisão; a morte de sua companheira, Marisa Letícia; o isolamento de Temer no governo Dilma, sua articulação golpista, entre outros.

Na segunda-feira (24) o longa será exibido na Casa do Baixo Augusta, no centro da capital, com posterior debate com Petra, a partir das 19h.

Por Rede Brasil Atual

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