Descaso de Bolsonaro empurrou país à crise do trigo e a mais fome

Escalada dos preços nos supermercados e risco de desabastecimento evidenciam os danos causados pelo desmonte das políticas públicas de segurança alimentar

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Preço do trigo dispara; Brasil depende de importação

O desmonte das políticas públicas de segurança alimentar e a opção pelo agronegócio de exportação, em detrimento da agricultura familiar, elevam a vulnerabilidade do Brasil aos efeitos do conflito no Leste Europeu. As medidas adotadas desde Michel Temer e agravadas por Jair Bolsonaro cobram a conta em momento de escalada de preços dos grãos vendidos na bolsa de Chicago, principal instituição financeira relacionada às commodities agrícolas. Os impactos negativos se disseminam pela economia brasileira.

Nesta segunda-feira (21), as negociações do trigo chegaram a ser interrompidas quando o contrato do cereal para maio subiu 8% e atingiu o limite máximo de valorização para um só pregão. As negociações foram retomadas e os papéis terminaram em alta de 5,22%. Na manhã desta terça (22), contratos futuros subiam mais de 30 pontos. O valor do trigo já está 50% mais alto do que antes da ofensiva militar russa, em 24 de fevereiro.

Juntas, Rússia e Ucrânia respondem por “uma parcela gigantesca, de cerca de um terço” das exportações mundiais, explica à DW o agroeconomista Matin Qaim, diretor do Centro de Pesquisa de Desenvolvimento, em Bonn. Alvo de sanções impostas pelos países ocidentais, a Rússia é, de longe, o maior exportador, enquanto a Ucrânia ocupa o quinto lugar. A maior parte do cereal é exportada no verão e outono europeus (junho a dezembro), “portanto, os maiores problemas ainda estão por vir”, adverte Qaim.

“A questão é se teremos como possibilitar as exportações russas de gêneros alimentícios a fim de evitar uma catástrofe humanitária, ou seja: os danos colaterais da guerra em outras partes do mundo”, especula Qaim. Isso diz respeito às sanções contra a Rússia, que não só dificultam as exportações como seu pagamento, já que vários bancos russos foram excluídos do sistema internacional de transferências monetárias. “Aqui na Europa precisamos discutir seriamente sobre exceções para alimentos”, aponta o cientista.

A guerra não dificulta apenas a exportação dos estoques disponíveis. Caso se prolongue, pelo menos na Ucrânia não será possível semear e colher na medida usual. Isso, por sua vez, reduzirá a oferta, impulsionando ainda mais os preços do trigo e gerando risco de desabastecimento em escala global no curto prazo.

Para piorar o quadro, os Estados Unidos, segundo maior exportador de trigo, sofrem com uma seca prolongada que afeta áreas da região central do país e deve comprometer a safra do grão. Os preços médios mensais de trigo para os contratos negociados nas bolsas de cereais de Buenos Aires e no Kansas (EUA) apresentaram alta de 4,24% e de em 5,13%, respectivamente, quando comparado com janeiro de 2022.

Argentina anuncia crédito adicional e Egito tabela preço do pão

O quadro é ruim para os países que dependem de importações de gêneros alimentícios, mas também afeta países produtores. Na Argentina, maior fornecedor de trigo para o Brasil, o ministro do Desenvolvimento Produtivo, Matías Kulfas, anunciou um crédito adicional aos produtores de farinha de trigo como parte do projeto de subsidiar o preço do produto. A medida tem como objetivo fazer o preço do pão retroagir para os valores de fevereiro e evitar “uma transferência maciça de preços para a mesa dos argentinos”.

O Egito, grande importador de trigo, decidiu tabelar o preço do pão não subsidiado em todas as padarias e outros estabelecimentos. O país gasta mais de US$ 4 bilhões ao ano com importações de alimentos, sendo que 70% do trigo consumido pela população, de 102,3 milhões de habitantes, são originários da Ucrânia e da Rússia.

Na semana passada, o Egito anunciou a suspensão de suas exportações de trigo, farinha, lentilhas e feijão por precaução. Já no Brasil, a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), desmantelada por Temer e Bolsonaro, torce para que a escalada de preços incentive o agronegócio a aumentar a área cultivada nas próximas safras.

O Brasil plantou 2,74 milhões de hectares de trigo em 2021, colhendo 7,7 milhões de toneladas. Exportou 2,1 milhões de toneladas e importou 7 milhões. O consumo foi de 12,5 milhões, segundo a Conab.

“Ao se analisar o histórico dos valores de mercado e a área destinada para a cultura, há indicativo de que os produtores respondem quando os preços estão elevados”, pondera o superintendente de Inteligência e Gestão da Oferta da Conab, Allan Silveira. “No entanto, os custos de produção em alta podem limitar o aumento esperado.”

Outro risco é de que os grandes produtores agrícolas nacionais decidam exportar sua produção, aproveitando o pico dos preços do trigo. Como ocorreu durante o início da pandemia, em 2020, quando o país se viu obrigado a importar feijão, arroz, milho e soja, devido ao desmantelamento dos estoques reguladores administrados pela Conab.

Nos supermercados brasileiros, levantamento da startup Varejo 360, feito a pedido do Estadão, mostrou que entre 1.º e 12 de março a farinha de trigo ficou, em média, 4,46% mais cara, o preço do macarrão com ovos subiu 4,24%, o de biscoitos, 2,62% e o do óleo de soja, 5,79%, em comparação com igual período de fevereiro.

Fábio Queiróz, presidente da Associação de Supermercados do Estado do Rio de Janeiro, conta que pães, biscoitos e todos os derivados de trigo e soja – substituto do trigo – são comprados com preços mais altos. Os supermercadistas, conta Queiróz, brigam por centavos nas negociações com fornecedores para reduzir repasses para o consumidor. Os aumentos ficarão mais visíveis nesta semana, alerta ele.

Walter Belik: “A fome custa caro”

No fim de janeiro, um dos principais pesquisadores em segurança alimentar do Brasil, Walter Belik, acusou Bolsonaro de promover uma política deliberada de desmonte das iniciativas contra a fome adotadas nos governos petistas. “Se tivéssemos uma rede de proteção social em funcionamento, não teríamos um quadro tão complicado quanto o que estamos vivendo”, disse em entrevista à Folha de São Paulo.

“Existe um custo social da fome. Esse custo deve ser gerenciado pelas políticas públicas. Ele impacta no sistema de segurança social, no Orçamento, na saúde, na educação —com atraso de aprendizagem das crianças—, e no mercado de trabalho, com redução da mão de obra e da produtividade”, afirmou Belik, um dos criadores do Fome Zero. “Colocando na balança, prevenir seria mais barato. A fome custa caro.”

O professor aposentado da Universidade Federal de Campinas (Unicamp) detalhou ainda a extensa lista de retrocessos. “O programa de estoques de regulação da Conab, por exemplo, baseado principalmente em compras da agricultura familiar, acabou”, exemplifica. “Boa parte da crise de desabastecimento e alta de preços em 2020 tem a ver com a ideia de que o Brasil não precisa de estoques reguladores de alimentos.”

“O Bolsa Família, desidratado, passou de um programa de transferência de renda com condicionalidades para um de doação. Com o Auxílio Brasil, a ideia de proteção e assistência social dessas famílias foi escanteada”, continua o professor. “O Pronaf (Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar) foi desidratado e os valores cortados em 35%. O programa de reforma agrária, a Secretaria de Agricultura Familiar e o programa de cisternas, todos foram descontinuados.”

Outra política pública extinta, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) priorizava a compra de alimentos de agricultura familiar para doações ou alimentação escolar. “Estamos numa situação de retrocesso que é única no mundo. Não há sequer um caso na história documentado pela FAO de um país que saiu do Mapa da Fome e voltou. Esse é o tamanho da tragédia que estamos vivendo”, finalizou Belik.

Da Redação, com agências

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