“Esse governo vai passar e vamos voltar com muito mais força”, diz Stedile
Em entrevista ao Painel Haddad, o economista e membro da direção nacional do MST falou sobre a importância da reforma agrária
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Na última segunda-feira (16), João Pedro Stedile, economista graduado pela PUC do Rio Grande do Sul, pós-graduado pela Universidade Nacional Autônoma do México, fundador e membro da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), conversou com o ex-prefeito de São Paulo e candidato presidencial pelo PT em 2018, Fernando Haddad, no programa Painel Haddad.
Stedile falou sobre a importância da reforma agrária para toda a população brasileira e não apenas para quem vive no campo, além de fazer uma análise do desmonte promovido pelo governo Bolsonaro em relação a essa política. Ele ressalta que hoje o principal problema relacionado à agricultura no país é o modelo econômico adotado.
“Há pesquisas científicas que dizem que se a gente pegar a cadeira produtiva da soja, o dono da terra fica com 10% da soja, se ele arrendasse, ganharia mais, e 67% do lucro vai para as multinacionais, que vende para o mesmo produtor o agrotóxico. Quem lucra com o agronegócio não é o povo brasileiro, nem a burguesia, nem o fazendeiro é o agronegócio. Nós importamos 20 milhões de toneladas por anos de insumos agrícolas”, pontuou.
Com o governo Bolsonaro, o economista considera que essa situação se agravou. “Vai aumentar o êxodo, pegaram o Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] justamente para tomar de assalto terras públicas da Amazônia e a ministra da Agricultura realiza ações para favorecer o agronegócio. Vão liberar a venda de terras na Amazônia para estrangeiros, além dos 600 mil novos tipos de agrotóxicos liberados”, disse.
Entretanto, para Stedile, o modelo tem contradições que serão cobradas pela própria natureza.
“Eles podem, do ponto de vista legal, legitimar essa exploração capitalista, mas a natureza se vinga e a natureza está do nosso lado e por mais que o agronegócio seja o maior exportador produtor de soja, algodão, cana, café, esse modelo não tem futuro. A fragilidade do modelo é evidente, porque é antinatureza. Mas esse governo vai passar rápido e vamos voltar com muito mais força, com uma agricultura para produzir alimentos que irão fortalecer quem vive da agricultura”, afirma.
O enfrentamento dos modelos da agricultura brasileira
Para João Pedro Stedile, o Brasil conta hoje com três modelos agrícolas que se enfrentam: o latifúndio especulativo; o agronegócio e agricultura familiar.
“O latifúndio especulativo tem como exemplo o Daniel Dantas que, com dinheiro americano, comprou 600 mil hectares de terras no Pará. Ele tem uma cabeça de gado a cada 3 hectares. O objetivo dele é especular a terra e vender daqui a 10 anos pelo dobro. O segundo é o agronegócio: grandes extensões de terra, monocultura, baseado em alta mecanização e que substitui a mão de obra com agrotóxico, uma espécie de plantation moderna sem mão de obra. O modelo que quer fazer uma agricultura sem agricultor e o terceiro é a agricultura familiar, agroecológica, a agricultura popular”, afirma.
Para o economista, o mais perverso do agronegócio, que tem total apoio do governo Bolsonaro, é que ele é um modelo que produz às custas de desemprego e de agressão à natureza.
“O agronegócio não consegue produzir sem veneno e o veneno por ser de origem química, não se dissolve na natureza. Ele vai para o lençol freático e quando evapora vai para a nuvem e depois volta para a gente na forma de chuva. Cientistas da área de saúde falam que se tu te alimentas constantemente com alimentos produzidos com agrotóxico, ele vai se acumulando no organismo e ao acumular, vai quebrando as células e produz câncer, tumor. Por isso que hoje se vê câncer em pessoas jovens. E esse é um dado no Instituto Nacional do Câncer”, afirma.
Reforma Agrária
O economista considera que o Brasil perdeu duas grandes oportunidades de realizar a reforma agrária no país. A primeira foi com o fim da escravidão. Ele ressalta que todos os países que fizeram uso da escravidão promoveram, em seguida, a reforma agrária. Ou seja, garantiram o acesso à terra aos ex-escravos. Sendo, o primeiro o Haiti em 1904 e depois os Estados Unidos.
“A segunda oportunidade perdida foi em 1964 quando surgiu a primeira crise do capitalismo industrial. O Celso Furtado disse para o João Goulart que a saída para a crise era a reforma agrária, porque geraria um grande mercado interno para abastecer a indústria brasileira, mas a resposta que a burguesia industrial de São Paulo deu foi o golpe militar”, afirma.
Haddad pediu que Stedile esclarecesse alguns pontos da luta travada pelo MST ao longo da sua trajetória. Para o economista, a primeira etapa da história do movimento, de 1979 até 1995 contou com uma luta mais programática baseada na herança histórica tanto brasileira, das ligas camponesas, quanto zapatista, de Emiliano Zapata, que defendeu por toda a América Latina o lema: “terra para quem nela trabalha”.
“Aqui, a CPT difundiu esse lema. Logo, qual era o simplismo? Se eu tiver terra, vou progredir, criar minha família, entre outros. Nós em 15 anos conquistando terra – e um dos período em que mais ocorreu isso foi no governo Sarney – nós nos demos conta de que só terra não tira as pessoas da pobreza. Então, serviram os ensinamentos do Celso Furtado: tem que combinar com a agroindústria. Você só vai agregar valor ao trabalho se passar por um processo de agroindústria. Se você vender o leite in natura para a Nestlé quem vai ganhar é a Nestlé. Se os parentes continuarem a vender só ovo in natura quem vai ganhar é a cantina. A única forma do camponês ter acesso a esse valor agregado é se ele participar do processo de agroindústria e a única maneira do camponês organizar uma agroindústria é na forma cooperativa”, explicou.
Com a agroindústria o movimento percebeu também que essa também era a única forma de garantir o emprego e a permanência do jovem no campo, porque sem oportunidades, esse jovem migra para a cidade. “Se temos uma cooperativa de leite o cara pode ser veterinário, agrônomo, bioquímico, motorista de caminhão e isso agrega valor. Passamos 10 anos trabalhando com agroindústria. Quem nos ajudou: Carlos Lessa, como diretor social do BNDES. Nessa época ele criou um crédito destinado a assentados da reforma agrária, porque até então não existia”, afirma.
O surgimento da agroecologia
Nos últimos 10 anos do Movimento Sem Terra (MST), Stedile conta que se percebeu mais um ponto: a garantia da produtividade com qualidade. Foi então que surgiu a agroecologia.
“Passamos a adotar a agroecologia como matriz tecnológica, porque ela é mais do que isso, ela é uma nova relação do sujeito com a natureza. Você produz em harmonia com a natureza e, logo, isso é contraponto ao agronegócio”, afirma.
O economista aponta que o tripé: crédito, terra e educação é a base do fortalecimento da reforma agrária e para isso foi necessário investimento em educação e em agrônomos que entendessem os benefícios da produção agroecológica.
“Isso foi construído na prática e no último congresso de 2014 do MST, onde consolidamos essa declaração teórica, que chamamos de Programa da Reforma Agrária Popular, porque a reforma agrária não é mais camponesa, ela interessa a todos os brasileiros. Onde está o interesse do povo? Na comida saudável, na proteção das florestas e mananciais. Quem vai proteger as águas se não é o camponês?”, questionou.
Outro ponto abordado por ele foi a necessidade de investimentos em cursos que trabalham na forma de alternância. Ou seja, três dias de aula e depois o aluno retorna para a sua comunidade de origem.
Haddad falou de algumas obras desempenhadas em seu mandato como prefeito, como foi o caso de adotar a obrigatoriedade de 30% dos produtos da merenda escolar serem de origem da agricultura familiar, no âmbito do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).
“Falavam que não tinha disponibilidade, mas saímos de um índice de 2% e deixei o governo com 26%. Ficamos abaixo, mas com a certeza de que o programa foi fundamental”, afirma.
Fernando Haddad também citou a Universidade Federal da Fronteira Sul, que abrange três estados produtores de alimento: Rio Grande do Sul; Santa Catarina; e Paraná com cursos destinados à produção de alimentos.
Complementando o que Haddad citou, Stédile contou o caso de uma escola do Piauí que comprava biscoitos industrializados em São Paulo, depois do programa de alimentação saudável as crianças passaram a comer frutas e tapioca.
O economista também fez críticas ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) dizendo que o crédito é necessário, mas não se trata de um programa social. “Ele serve para camponês que já está integrado com a indústria. Quem gosta do Pronaf é a indústria, inclusive, ele serve para financiar o capital de giro da empresa, da multinacional”, disse.
Por Brasil de Fato