Fernando Haddad: trabalhador em vertigem

Em sua coluna na Folha de S. Paulo, ex-ministro da Educação analisa o documentário American Factory, concorrente de Democracia em Vertigem no Oscar

Indicado ao Oscar de melhor documentário, “Democracia em Vertigem” tem um desafio pela frente: vencer “American Factory”. Oxalá! O documentário apoiado pelo casal Obama conta uma história igualmente vertiginosa.

Em 2008, por ocasião da crise financeira global, a GM fecha uma fábrica de automóveis em Dayton, Ohio. Sete anos depois, uma multinacional chinesa, Fuyao Glass America, adquire a planta e abre uma unidade para a produção de vidros para carros.

À guisa de discutir o choque entre as culturas americana e chinesa, o documentário revela facetas da profunda crise que assola o mundo do trabalho, globalmente.

Para os dirigentes chineses da nova empresa, os americanos são pessoas de personalidade livre, capazes de fazer piadas sobre o chefe e falar o que pensam sem rodeios, mas não gostam de abstrações. Por outro lado, “há uma cultura nos EUA de aplaudir demais as crianças”, que, em função disso, crescem prepotentes.

Enquanto trabalhadores, os americanos são ineficientes, comparativamente aos chineses. Folgam aos finais de semana, somando oito folgas ao mês, contra duas dos chineses. Fazem jornada de oito horas, contra 12, dos pares orientais. Não são obrigados por lei a fazer horas extras. Como se não bastasse, têm os dedos “gordos e lerdos”.

Gerentes americanos visitam uma planta da empresa na China e comprovam a diferença. A destreza dos trabalhadores chineses impressiona. Os dedinhos delgados e ágeis também. A disciplina é militar. Voltam dispostos a adotar as práticas que presenciam, não sem antes participar de uma bizarra festa de fim de ano da empresa, em que as “performances artísticas” dos trabalhadores denotam a impossibilidade de qualquer reação emancipatória por parte do proletariado. A cena é deprimente.

Os prejuízos da operação nos EUA, entretanto, e as práticas empresariais chinesas, sobretudo quanto à segurança no trabalho, desencadeiam dois movimentos contraditórios, mas não excludentes: de um lado, a substituição dos gerentes americanos por chineses; de outro, a mobilização dos trabalhadores pela criação de um sindicato.

Mesmo pagando um salário 50% menor do que o pago pela GM uma década antes, a Fuyao inicia uma operação de guerra para impedir a formação do sindicato. Sob o lema “keep your voice”, demite ativistas e obriga seus trabalhadores a sessões de doutrinação antissindical, conduzidas por consultoria contratada.

Em 2018, a empresa dá lucro e entra em nova fase, a da automação.

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Fernando Haddad é professor universitário, ex-ministro da Educação (governos Lula e Dilma) e ex-prefeito de São Paulo.

Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo

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