Jean Paul Prates: O dever do Senado
Apesar de amenizada pela atuação da bancada da Oposição na Câmara, a reforma da Previdência continua perversa para os trabalhadores brasileiros mais pobres
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O Senado tem a oportunidade de corrigir distorções e medidas incluídas na PEC da reforma da Previdência que aprofundam a desigualdade social e praticamente extinguem o pouco do Estado de Bem-Estar criado pela Constituição de 1988. A oposição atuará para extirpar algumas perversidades que ainda persistem no texto, e que prejudicam os trabalhadores. Certamente, o Senado não desejará ser corresponsável pelo aumento da pobreza entre os idosos e pela elevação das desigualdades em um país tão marcadamente desigual como o Brasil.
Dados do IBGE de 2017 indicam que os 10% mais ricos ganham 17,6 vezes mais que os 40% mais pobres. O grupo dos 10% mais ricos concentra 43,1% da renda do País. No Nordeste está a maior desigualdade: os 10% mais ricos ganharam 20,6 vezes mais que os 40% mais pobres. O fosso só não é maior porque a Seguridade Social tem papel distributivo, graças às aposentadorias e pensões.
Nacionalmente, ainda segundo o IBGE, 74% da renda dos brasileiros vem do trabalho, 19% advém da aposentadoria e pensão e 7% de outras fontes. No Nordeste, 67% decorrem do trabalho, 24% da aposentadoria e pensão e 9% de outras fontes. Por isso não se pode imaginar uma verdadeira reforma da Previdência sem considerar o papel estratégico que as aposentadorias e pensões desempenham na vida do povo e na economia.
De forma lamentável, o governo Bolsonaro ignora essa realidade. Tanto que enviou ao Congresso uma proposta que pode ser sintetizada na fórmula “reformar para excluir”. Em sua versão original, a proposta era cruel. A propaganda oficial dizia que a “Nova Previdência” combateria os privilégios, mas, na essência, o que produziria era uma massa de trabalhadores pobres e excluídos do sistema de proteção social.
Os senadores desejam ser corresponsáveis pelo aumento da pobreza dos idosos e da elevação da desigualdade?
O texto aprovado pela Câmara em primeiro turno atenuou a proposta original, o que de certa forma é uma derrota para o governo. Isso porque tirou da PEC a ideia de capitalização, que acabava com a Previdência pública. Também foram minimizados diversos impactos em relação à aposentadoria rural, ao tempo mínimo para se ter direito à aposentadoria (carência) e ao Benefício de Prestação Continuada (BPC). Essa limpeza foi uma vitória importante, ainda que parcial, do povo, fruto das manifestações dos trabalhadores, professores e estudantes que ocuparam as ruas e praças do Brasil. Foi uma vitória também do Parlamento, especialmente da oposição.
Ainda assim, a reforma aprovada pela Câmara mantém a lógica injusta no tratamento aos mais pobres. O texto promove uma redução drástica no valor das aposentadorias, ao introduzir duas regras de cálculo que podem reduzir o benefício a quase metade do rendimento atual.
Primeiro, o texto aprovado inclui todo o período trabalhado na fórmula de cálculo, e não 80% das maiores contribuições, como ocorre atualmente. Essa medida reduzirá o valor das aposentadorias em, no mínimo, 10%. Segundo, a reforma fixa o benefício em 60% da média aritmética anterior, com acréscimo de 2% para cada ano que exceder o tempo de 20 anos de contribuição, no caso do homem, e 15 anos, no caso da mulher.
Para a aposentadoria integral (com a média já reduzida), o trabalhador precisará trabalhar por 40 anos e a trabalhadora por 30 anos. Um vendedor que, pelas regras atuais, se aposentaria aos 65 anos, com 20 anos de contribuição, no valor de 2 mil reais, pelas novas terá o benefício reduzido a 1.080.
O texto aprovado aumenta de 15 para 20 anos o tempo mínimo de contribuição para que homens possam se aposentar. A regra vale para quem ingressar no mercado de trabalho após a entrada em vigor da reforma. A carência permanecerá em 15 anos apenas para as mulheres e para os homens que já são segurados do INSS.
Ao elevar o tempo mínimo em cinco anos, a reforma retira o direito à aposentadoria dos milhões de trabalhadores pobres e sem qualificação que vivem a tragédia do desemprego e da informalidade. Dois anos atrás, 54% dos homens não conseguiriam se aposentar por idade, por não conseguirem comprovar 20 anos de contribuição.
A injustiça é manifesta: além de o Estado e a sociedade não lhes assegurarem o direito ao emprego protegido, com carteira assinada, ainda lhes tirarão o direito à aposentadoria.
A reforma ataca ainda a pensão das viúvas e dos órfãos, ao prever a possibilidade de pagamento em valor inferior a um salário mínimo para os dependentes que tenham outra fonte de renda.
Hoje, um aposentado por invalidez recebe o valor integral do último salário. A reforma acaba com essa possibilidade ao apontar que apenas a incapacidade permanente decorrente de acidente ou doença do trabalho incluirá o valor integral. Para todos os demais casos, a aposentadoria será o equivalente a 60% da média dos salários, com acréscimo de 2% para cada ano que exceder o tempo de 20 anos de contribuição.
A reforma reduz fortemente o valor da aposentadoria por invalidez e acaba, na prática, com a aposentadoria especial dos professores e com a aposentadoria especial de quem trabalha em áreas insalubres ou perigosas. Os prejudicados, além dos servidores públicos, são os trabalhadores do regime geral do INSS, cujo valor médio das aposentadorias é de 1,4 salário mínimo.
As exclusões previdenciárias e a diminuição significativa no valor das aposentadorias têm como consequência a redução do dinheiro que faz a roda da economia girar, especialmente nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e nos pequenos municípios. Isso pode significar maior dificuldade para a retomada do crescimento e da geração de emprego.
Jean Paul Prates é economista, advogado e senador pelo PT-RN
*Artigo originalmente publicado no Carta Capital