José Dirceu: programa para unir esquerdas precisa incluir reforma bancária
Renda nacional é expropriada por juros e impostos, nos colocando entre os piores países em desigualdade social e distribuição
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Qual programa uniria as esquerdas? O que nosso povo espera que os partidos socialistas democráticos defendam e façam? Em primeiro lugar, combate às desigualdades e à pobreza, acesso a saúde e educação públicas, gratuitas e de qualidade, direito à habitação e ao saneamento, ao transporte público bom e barato, ao lazer e à cultura.
O povo quer uma vida em paz, com segurança, justiça, liberdade e democracia. Um Estado com respeito ao papel das instituições e que ofereça um serviço público sob controle social, com metas e gestão definidas e compartilhadas pelos usuários e contribuintes.
Outras questões se colocam e merecem reflexões e respostas. Como retomar o crescimento econômico com distribuição de renda e como financiar o Estado de bem-estar social e o desenvolvimento nacional? Como superar o déficit público e retomar os investimento públicos sem endividar o Estado ou aumentar a inflação, dois estrangulamentos históricos do nosso Brasil?
Nosso diagnóstico passa pela urgente necessidade de uma reforma tributária e dos sistemas financeiro e bancário – caminho para o financiamento de nosso desenvolvimento e prestação de serviços públicos universais, inclusive da seguridade social e Previdência. Atualmente, nossa estrutura tributária concentra renda, cobra mais dos que ganham menos via bens e serviços e menos dos que ganham mais, via renda e patrimônio.
Vivemos uma economia concentradora de renda via impostos e, o mais grave, via juros, os mais altos do mundo, criando uma economia de subconsumo. Um país com capacidade produtiva e riqueza subutilizada e demanda altíssima (e não atendida) de serviços públicos – habitação e saneamento, logística em geral, alimentos, bens de consumo duráveis, cultura e lazer.
A renda nacional é extraída e expropriada pelos juros e impostos, nos colocando entre os piores países em desigualdade social e distribuição de renda. A concentração de renda é agravada pelo poder dos monopólios e cartéis, começando pelo bancário, cuja rentabilidade repõe o patrimônio a cada quatro anos, e pela estrutura política, judicial e de informação.
Nossa realidade é perversa: algumas poucas famílias controlam os bancos e a mídia, ao mesmo tempo em que temos um poder político atrofiado tanto pela forma de se eleger quanto de governar.
Infelizmente, a função de intermediação financeira, de financiamento do investimento e do consumo se transformou numa máquina de extrair renda das pessoas, famílias e empresas, ampliando o abismo das desigualdades. A dívida pública que em todo mundo paga juros de 1% ou negativos, aqui suga 5% do PIB do orçamento público, drenando todo esse dinheiro para as mãos de pessoas físicas e jurídicas que representam menos de um 1% da população.
São esses canais de concentração – a estrutura tributária, os juros bancários e o serviço da dívida pública – que inviabilizam o financiamento do desenvolvimento econômico e da prestação de serviços públicos universais, apesar da carga tributária de 35% do PIB. Isto é, não se cobra pouco imposto no Brasil, mas os canais concentradores de renda não deixam que o país cumpra aquilo que o povo espera e tem direito assegurado pela Constituição.
Além da reforma tributária e do sistema financeiro, o Brasil também precisa urgentemente de um outro sistema político eleitoral, com voto em lista ou distrital misto proporcional, com fidelidade partidária e financiamento público. Também se faz necessária uma política de fortalecimento e expansão dos bancos públicos para que cumpram seu papel social e, ao mesmo tempo, sirvam como régua para forçar a concorrência.
Não há, ainda, como crescer e se desenvolver sem uma revisão ampla do nosso modelo, insustentável do ponto de vista social e ambiental, seja no combate às desigualdades, seja na busca da proteção ao meio ambiente ou da justiça social. Não podemos continuar com nossa matriz de energia, transportes, consumo, uso de combustíveis fósseis ou agrotóxicos, porque inviável do ponto de vista econômico e ambiental.
Nosso país corre o risco de perder a oportunidade histórica da atual revolução tecnológica. O investimento em educação, ciência e tecnologia, que nos leve a uma revolução industrial apoiada no nosso mercado interno e no financiamento via bancos públicos e Estado, deve ser nossa prioridade. Não só com vistas à justiça social, mas como premissas de garantia da soberania nacional.
Basta ver os exemplos que vêm de fora. No mundo, os países que avançam o fazem no tripé bancos públicos, revolução industrial 4.0 e o Estado como vanguarda. O que vemos por aqui é o risco de o Brasil caminhar no sentido inverso.
Não há como separar a democracia – o poder de decisão de quem e como cobrar impostos e de onde e como investir – de quem decide como cada classe social participa da criação da riqueza nacional e de sua distribuição, não só ao cobrar impostos, mas principalmente onde e quando investir. Hoje caminhamos aceleradamente para uma maior concentração de renda e aumento da desigualdade e da pobreza com todas suas consequências políticas e sociais que assistimos em nossa vizinhança.
O modelo tardio ultraliberal é um equívoco histórico, porque coloca em risco nossa soberania, que fica à mercê do capital financeiro internacional (causa da atual crise que assola o mundo), e agravará ainda mais a desigualdade social e a concentração do poder, não só o econômico. A cartilha ultraliberal defendida por Paulo Guedes coloca em risco a própria democracia brasileira.
A questão que se coloca para as esquerdas é: como ter apoio popular suficiente para reformar não só o Estado, mas também alcançando a distribuição de renda e riquezas? Sem isso, nunca haverá desenvolvimento justo e igualitário, que é o objetivo do socialismo democrático. É preciso retomar o fio da história da revolução brasileira inacabada, nacional, democrática e social, que coloque um ponto final na maldição de um Brasil rico com um povo pobre.
José Dirceu é ex-ministro da Casa Civil e um dos fundadores do PT
*Artigo publicado originalmente no Metrópoles