Kjeld Jakobsen: Afinal, o período histórico deve ser elogiado ou criticado?

Para o autor, artigo “Balanço de um período histórico” minimiza legado dos governos do PT, pois seria um resultado da economia marginal e do “lulismo”, essencialmente conciliador

Tribuna de Debates do PT

Kjeld Jakobsen. Foto: Roberto Parizotti.

Na década de 1980, quando ainda trabalhava na CPFL, antes de ela ser privatizada e antes de eu ingressar no movimento sindical, tive a oportunidade de assistir a uma palestra proferida pelo economista desenvolvimentista Antonio Barros de Castro, falecido em 2011. Já era governo Sarney, e o Brasil estava espremido economicamente pelos encargos da dívida externa e pelas altas taxas de inflação, bem como por outras heranças malditas da ditadura. O professor, entre outras avaliações, disse que não estávamos vivendo apenas uma década perdida, mas que toda uma geração de brasileiros não tinha outra perspectiva a não ser a exclusão social e a miséria devido à situação do país.

Se a década de 1980 foi uma década perdida no Brasil devido ao baixo crescimento econômico, a década neoliberal de 1990 não foi muito melhor no tocante ao crescimento médio do PIB e além da entrega, pelos governantes da ocasião, ao setor privado de empresas estatais que poderiam atuar como indutores do desenvolvimento. Estes governantes também promoveram uma série de mudanças de regras que favoreceram o setor privado, a concentração de renda e a pobreza.

Não foi sem razão que já no discurso de posse de Lula em 2003 ele lançou a proposta do “Fome Zero”, que se desdobrou em seguida no Programa Bolsa Família e que foi um dos elementos usados para atacar o problema apontado por Barros de Castro uns 18 anos antes e agravado nos governos seguintes. O programa possibilitou que quase 46 milhões de brasileiras, um quarto da população, simplesmente passassem a consumir três refeições ao dia, o que não foi pouca coisa conforme reconhecido por instituições internacionais e pelos setores políticos progressistas e de esquerda no mundo todo.

Os autores do artigo “Balanço de um período histórico”, André Singer e Carlos Árabe, também avaliam positivamente o Programa Bolsa Família e incluem outras medidas nesta avaliação, como o empréstimo consignado e a política de valorização do salário mínimo como fatores que contribuíram para o desenvolvimento nacional e combate à pobreza. Além disso haveria outras medidas domésticas complementares também importantes, além da política externa brasileira que foi única na história considerando seu alcance.

O problema do texto é que agora que a “vaca tossiu” e sofremos o golpe de Estado, os autores minimizam o legado dos governos do PT sob os argumentos que seria um resultado da economia marginal, proporcionada principalmente pelo período de valorização das commodities e que teria ido adiante em troca de não haver enfrentamento e apropriação de recursos das forças do capital, e o “lulismo”, por ser essencialmente conciliador, seria o responsável por isso. O “lulismo” seria também responsável pelas alianças políticas feitas para disputar a eleição presidencial em 2002, que não haviam sido previamente aprovadas em encontros do PT, mencionando especificamente a escolha de um empresário, José Alencar, como candidato a vice-presidente na chapa que acabou vitoriosa.

O companheiro André Singer, a quem respeito muito, defende sua tese sobre o “lulismo” já há alguns anos a partir da constatação de que Lula teria mais apoio popular que o PT e que suas ideias respaldadas pela população teriam influência decisiva sobre as decisões do partido, particularmente, no que tange à conciliação de classes. É uma tese acadêmica interessante ao tentar explicar o papel de Lula na política brasileira, particularmente, depois que assumiu a Presidência da República.

Porém, não concordo com ela, assim como também não concordo com a afirmação que o companheiro André fez em uma reunião do Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo de que a “Operação Lava Jato” era um dos acontecimentos mais republicanos dos últimos tempos. Não concordo com a tese do “lulismo” como é apresentada, pois não considera a história do PT e do Lula, bem como a contribuição recíproca e o intercâmbio que houve entre cada uma destas instituições políticas ao longo de suas existências. Muitas vezes, as opiniões de Lula foram aceitas pelo partido e outras tantas vezes suas propostas não vingaram. O PT nunca foi dirigido por caudilhos, e sim por líderes partidários de quem se espera opiniões firmes e a defesa de suas opiniões.

Outra afirmação, no mínimo injusta, é confundir a capacidade de negociar e compor, inclusive com adversários, quando necessário, com conciliação de classes. Ora, o PT decidiu desde 1989 disputar as eleições presidenciais no Brasil e quando vencesse era sabido que teria que governar para todos e não somente para os eleitores do PT e, portanto, o único comportamento que se poderia esperar seria uma relação democrática e de diálogo com a sociedade. Pergunto: se o Lula é um conciliador de classes, porque é tão perseguido pela direita deste país? Por que diversas correntes políticas internas o querem como o próximo presidente do PT? Por que todas as correntes defendem que seja candidato a presidente novamente em 2018? É incoerência ou oportunismo?

A crítica à política de alianças é outro argumento interessante ao ser feita agora e não na época. Me permito usar o argumento do companheiro Wladimir Pomar sobre este tema quando afirma que aliança se faz com inimigos para atingir determinado resultado político no enfrentamento do inimigo principal. Que pode se traduzir também em “aliança se faz com os diferentes e unidade se faz com quem tem o mesmo ideal”. A aliança eleitoral feita em 2002 possibilitou derrotar o inimigo principal, a aliança PSDB, PFL e PMDB, e vencer a eleição e muitos dos atuais críticos a esta política foram felizes trabalhar no governo e alguns ali permaneceram até o impeachment da presidenta Dilma. Aliás, as alianças eleitorais não foram somente importantes para assegurar vitórias do PT no nível federal como também na esfera estadual, como a eleição da companheira Ana Júlia para o governo do Pará em 2006.

Os companheiros fazem muito bem em relembrar o caráter socialista do PT, mas é bom lembrar também que os programas eleitorais do partido nunca foram socialistas, e sim reformistas. Reforma tributária, reforma política, democratização dos meios de comunicação, entre outras medidas necessárias, são reformas e no campo capitalista. No entanto, executá-las no Brasil e na América Latina, diante da truculência e reacionarismo de nossas elites, é uma tarefa hercúlea que exige muita consciência e respaldo popular. Não nos esqueçamos que o Lula em seus dois mandatos, assim como a Dilma, foram eleitos somente no segundo turno, o que significa que menos de 50% dos eleitores apoiaram nosso programa eleitoral no início dos processos eleitorais.

Portanto, alguma prudência e responsabilidade era necessária, mas ninguém estava proibido de discutir e propor reformas mais profundas. Me pergunto, por que as três reformas que agora são mencionadas incisivamente não vieram à tona com a mesma força no interior do partido quando estávamos no governo e com altos índices de popularidade? Quem sabe teríamos aprovado alguma coisa. Se eventualmente, houve um erro de cálculo quanto à impossibilidade de aprovar estas reformas, este erro é de todos, e não do presidente Lula.

Quanto às supostas despesas marginais para financiar as políticas sociais do governo Lula, para rechaçar esta afirmação é só comparar os orçamentos dos oito anos do governo FHC com os dois mandatos de Lula e verificar a distribuição dos gastos e a mudança de prioridades. Além disso, uma série de benefícios que eram oferecidos ao setor privado no passado, como a privatização de empresas públicas, deixou de ocorrer no nosso governo. A valorização das commodities permitiu acumular as reservas internacionais que nos deram segurança econômica na esfera financeira e não necessariamente recursos para despender com as políticas sociais, pois a maior parte de sua valorização foi parar no bolso do setor privado com exceção, principalmente, do petróleo.

Por fim, há duas maneiras de fazer o debate político. Com base nos fatos ou com base na interpretação dos fatos. Para exemplificar, o MDA para cooperar com o desenvolvimento de países pobres e dependentes da agricultura na América Latina e na África, em determinado momento começou a doar tratores. Pessoalmente, considerei uma excelente medida de cooperação internacional, mas, se eu quisesse interpretar a medida com má fé, diria que o MDA e, principalmente seu ministro, estaria conciliando e beneficiando a empresa que fabrica os tratores, possivelmente a Massey Ferguson ou a Valtra, duas grandes empresas multinacionais. A escolha de como fazer o debate no VI Congresso cabe aos autores das teses com todas as consequências do que isso pode significar para o bem ou para o mal num momento em que estamos sofrendo o mais duro ataque da direita neste país e mais necessitamos de unidade no partido.

Kjeld Jakobsen foi secretário de Relações Internacionais da CUT e é diretor da Fundação Perseu Abramo, para a Tribuna de Debates do 6º Congresso. Saiba como participar.

ATENÇÃO: ideias e opiniões emitidas nos artigos da Tribuna de Debates do PT são de exclusiva responsabilidade dos autores, não representando oficialmente a visão do Partido dos Trabalhadores

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