Mandatos coletivos amplificam o debate
Coletivo Teremos Voz (PT) fala sobre os desafios para se elegerem no Rio Grande do Sul
Publicado em
*Publicado originalmente na página do Brasil de Fato/RS
A eleição de 2020, apesar de manter a hegemonia de homens brancos no poder, trouxe um incremento na diversidade, com uma maior participação das mulheres, negros e negras e candidaturas trans. Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), no primeiro turno foram eleitas, neste ano, 651 prefeitas (12,1%), contra 4.750 prefeitos (87,9%). No segundo turno apenas sete mulheres foram eleitas para prefeituras. Já para as câmaras municipais, foram 9.196 vereadoras eleitas (16%), contra 48.265 vereadores (84%). Deste contexto, segundo levantamento da Gênero e Número, somando as cadeiras de todas as 25 capitais que elegeram suas câmaras, 44% serão ocupadas por pessoas negras, sendo 18% de mulheres negras.
Outro avanço dessa eleição foi em relação aos mandatos coletivos. Nos últimos oito anos, o número de candidaturas coletivas no Brasil saltou de três para 257. Destas, pelo menos 20 foram eleitas no pleito municipal de 2020. Não há um cálculo oficial do TSE, já que a modalidade não é reconhecida oficialmente. Uma dessas candidatura aconteceu no município de Viamão, com a eleição da petista Fátima Maria.
Eleita com 1.045 dos votos, além de encabeçar o primeiro mandato coletivo do estado, ela é a primeira vereadora negra eleita na cidade vizinha de Porto Alegre, que tem uma população estimada em 256.302 pessoas. Contudo, enquanto a capital gaúcha foi a cidade brasileira com a maior representatividade feminina na Câmara de Vereadores, sendo 11 das 36 vagas ocupadas por mulheres (30,55%), Viamão segue a realidade da maioria dos municípios do país, composta em sua maioria de homens brancos, tendo apenas duas mulheres.
Para enfrentar os desafios da vereança que começa em 2021, Fátima, de 55 anos, mulher, negra, mãe de dois filhos, avó e moradora do bairro Santa Isabel há mais de 50 anos, terá a companhia de outras quatro mulheres negras no seu mandato: Isabel Rodrigues, 47 anos; Alessandra Garcia, 38 anos; Rhosângela Silvério, 59 anos; e Andrielle Prates, 24 anos.
“O mandato coletivo é um facilitador, pois de forma comunitária amplifica o debate, democratiza e aproxima a comunidade de suas representantes na Câmara”, destaca Fátima.
Abaixo a entrevista feita pelo Brasil de Fato RS com Fátima e no final um perfil das integrantes do mandato coletivo.
Brasil de Fato RS – Gostaria de começar com tu nos contando um pouco da tua trajetória?
Fátima – Sou filiada ao Partido dos Trabalhadores desde 1981. Iniciei a minha carreira política assessorando um vereador na Câmara de Viamão em 1996. Dali em diante me identifiquei com os movimentos sociais, a luta contra a violência de gênero, ao racismo. Fiquei um ano e sete meses trabalhando na câmara de Viamão. Logo em seguida fui convidada pela deputada Maria do Rosário para compor a sua equipe e fique lá até um pouco antes de disputar a eleição municipal.
Atuei no movimento de mulheres, fui presidente do Conselho Municipal da Mulher em Viamão, depois participei do Conselho Estadual de Mulheres como presidente também, fiz parte da construção da primeira Secretaria de Políticas para Mulheres do Estado, no governo Tarso Genro, ao lado de Márcia Santana
BdFRS – Gostaria que nos falasse do mandato coletivo, por que a escolha dele e como será a articulação de vocês na câmara?
Fátima – Eu trabalhei 23 como assessora da deputada federal Maria do Rosário. Então eu acompanhei os mandatos dela, estadual e depois federal, e daí tive oportunidade de conhecer vários municípios e vários vereadores. Organizamos um grupo aqui em Viamão, o Coletivo Teremos Vez. Nesses 39 anos de filiação eu sempre fui adiando essa questão de concorrer, sempre fui me dedicando a colaborar na campanha de outros companheiros, mas nunca tinha me colocado, foi a primeira vez que eu concorri.
Como só um nome aparece na urna definimos que seria o meu por conta da trajetória que eu já tinha. O grupo político em que atuo há muito tempo vinha me pedindo isso, mas eu me senti muito mais fortalecida dessa forma coletiva.
No coletivo começamos a avaliar a conjuntura local e chegamos a conclusão que deveríamos participar do pleito nesse momento. E também tínhamos compreensão que tinha um apelo de classes identitárias. Percebemos a invisibilidade da mulher, a invisibilidades das mulheres negras, dos homens negros nesses espaços. Então começamos a discutir essa possibilidade de ter um mandato coletivo, estudando e vendo outros estados do Brasil, e também buscando outros países. E chegamos a conclusão de que seria uma forma bem viável de conseguirmos participar da disputa de uma forma que tivesse uma representatividade maior.
Começamos a analisar no grupo quais os segmentos que achávamos interessantes de se ter, baseado no que o nosso grupo já milita na cidade. Então incluímos a questão LGBT, também a questão do empreendedorismo, porque acreditamos que através da autonomia financeira a gente consegue fazer com que muitas mulheres rompam o ciclo da violência. Então o enfrentamento à violência contra as mulheres, o empreendedorismo, a questão LGBT, enfrentamento ao racismo, foram os temas que identificamos.
Esse coletivo não é formado só por mulheres negras, são homens e mulheres negras e não negras, mas que todos eles também tem na sua forma de pensar e agir na sua vida, o enfrentamento ao racismo. Aí nós decidimos em cada um desses segmentos identificar as pessoas com disponibilidade e vontade de entrar no pleito. E definimos por essas cinco; uma mulher jovem, uma empreendedora, uma LGBT, uma artista e comunicadora que trabalha toda essa temática da cultura e a importância da gente também ter espaço para os artistas locais e principalmente da cultura afro, que também vemos como muita dificuldade de poder estar nos espaços. Tem muitos talentos aqui que ficam invisibilizados.
Definimos por essas cinco e começamos a fazer o debate para fora. Aí vem um pouco a resistência não só do partido, por entender que esse formato ainda não existe de uma forma legal no Brasil, está circulando uma PEC desde 2017, enfrentamos isso também. Não dependia da decisão do partido, era uma decisão nossa. Vencemos esse primeiro obstáculo do partido e depois fomos às ruas conversar com as pessoas e apresentar o novo formato, que isso também dependia de muito tempo para as pessoas entenderem. Mas conseguimos, podíamos ter atingido mais pessoas, mas também por conta da pandemia tivemos que fazer uma campanha com muitas regras.
Onde nós acertamos foi fazer coletivamente e também a nossa comunicação foi boa através das redes. Quando tu apresenta a proposta e a população visualiza, aquele material com cinco mulheres negras já dá um impacto, as pessoas percebem que a ideia é diferente.
BdFRS – Como em muitas câmaras, a de Viamão é composta em sua maioria por homens brancos. Diante disso quais serão os principais desafios? Principais pautas?
Fátima – A gente já vem vivenciando e observado em outros estados que as companheiras eleitas estão sofrendo por serem as primeiras. Na história da cidade nós somos as primeiras, temos muito nítido que serão muitos obstáculos por conta do machismo. Viamão até hoje só elegeu duas mulheres, duas mulheres brancas, sendo uma que se reelegeu. E tu sabe que isso visualmente já cria impacto.
Nós fomos, três de nós, em um ato da Câmara, e tu percebe que a nossa chegada já deu uma impactada. É como a Bruninha falou (Bruna Rodrigues, vereadora recém eleita em Porto Alegre) porque as pessoas entendem que nosso lugar não é aquele ali. O racismo nos determinou um lugar, aquele lugar ou na cozinha, ou na higienização, e a gente rompendo com isso desacomoda as pessoas, os machistas, os racistas.
Claro que, educadamente, todos nos cumprimentam, ‘ah que legal, parabéns’. Contudo sabemos que no cotidiano, quando começarmos a trazer as causas do nosso povo, as nossas bandeiras que vamos defender, aí é que nós vamos sentir de fato a dificuldade. Mas estamos prontas para isso, sabemos que esse espaço é masculino, racista e que nós teremos muito trabalho pela frente. Nós somos cinco, estamos nos preparando, já fizemos o planejamento do nosso mandato para os primeiros seis meses. Todas nós estaremos lá. Um vereador aqui de Viamão já apresentou um projeto para permitir que as co-vereadoras possam ter voz também na tribuna. Vamos fazer com que esse projeto seja aprovado porque precisamos também dar visibilidade na prática, se fazer de fato um mandato coletivo. A câmara vai ter que entender esse formato e nos dar a oportunidade de legislar dessa forma.
BdFRS – Quais são as principais propostas que vocês terão para os próximos anos?
Fátima – Durante a campanha apresentamos pautas enfrentamento ao racismo, à violência contra as mulheres, também é uma temática porque nós mulheres negras somos as maiores vítimas de todas as formas de violência, empoderamento da mulher através autonomia financeira e enfrentamento do genocídio da juventude negra. Além das pautas que apresentamos durante a campanha, outras pautas surgirão como a questão da intolerância religiosa, da comunidade quilombola. Não só as pautas relacionadas à questão racial, lutaremos por todas as comunidades, mas por sermos cinco mulheres negras, por óbvio, nosso compromisso é contra o racismo e a violência contra as mulheres.
BdFRS – Além da questão da representatividade que esse pleito trouxe, há também a questão da violência política contra as mulheres…
Fátima – Eu percebo, por todo esse tempo que trabalhei, em que tive a oportunidade de trabalhar com a deputada Maria do Rosário, e ela foi a prova disso naquele ataque que ela sofreu com essa criatura que a gente nem pode dizer o nome. Não tem uma aceitação de que as mulheres evoluíram e que podem ocupar todos os espaços, estamos preparadas para isso.
Essa presença e o fato da própria população perceber que pode e deve eleger mulheres, que pode e deve eleger mulheres negras, transsexuais como foi o caso da Lins, em São Borja, que também é uma eleição muito significativa. Dessa forma, quando tu começa a ter nos espaços de decisão a diversidade, as justiças tendem a diminuir.
Então penso que o povo que é do mal, essa turma que quer continuar com a homofobia, com o feminicídio, que não quer que o povo levante, para eles isso é desconfortável. Mas as mulheres estão preparadas, e uma está fortalecendo a outra. A presença de uma mulher, ou de algumas mulheres nos espaços de poder acaba encorajando outras. Acredito que isso é só o começo, na próxima eleição muito mais mulheres estarão participando, muito mais negros e negras estarão, muito mais jovens como foi o exemplo de Porto Alegre, uma bancada com cinco negros.
Esse levante incomoda essa classe dominante, mas penso que cada vez, e isso é uma proposta também do nosso mandato, na formação das pessoas, não aquela coisa de formação político partidária, mas a formação para que as pessoas entendam a importância da participação nesses pleitos, é importante conhecer onde as coisas são decididas. Queremos estabelecer núcleos onde fomos votadas e avançar também para que durante esses quatro anos a gente vá formando as pessoas, debatendo, não só para as demandas, queremos trabalhar a mentalidade, a capacidade das pessoas formularem a política para transformar as suas vidas. Muitas pessoas não sabem o papel do vereador, então queremos trabalhar muito essa formação para as pessoas entenderem e participarem dos pleitos com mais compreensão e da importância do seu voto.
Conheça as demais integrantes do mandato coletivo
Isabel Rodrigues, 47 anos, moradora do Parque Indio Jari. Microemprendedora, sempre atuou na política como apoiadora. Participou de atividades sociais juntamente com sua mãe, Maria Teresinha, no Clube de Mães Indio Jari.
“Para mim a eleição desse ano demonstrou, diante de tudo o que presenciamos ao longo da campanha e também no resultado das urnas, que a população, assim como nós, está cansada da política ultrapassada que está instalada na nossa cidade. Conseguimos com nossa transparência conquistar 1.045 pessoas e tenho certeza que esse modelo revolucionário de fazer política que trouxemos para Viamão vai abrir os olhos e a mente de muitas pessoas. Com certeza seremos exemplos para outros mandatos em nossa vida das nas próxima eleições. Só teremos voz se tivermos vez”, ressalta Isabel.
Alessandra Garcia, 38 anos, moradora do bairro Parque Indio Jari. Técnica em edificações, atua na área de Regularização Fundiária (Urbanístico). É estudante de Engenharia Cartográfica na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Militante pela causa das minorias: É mulher, negra lésbica, em processo de revolução.
“As eleições ao meu ver, tiveram um significado de movimento e revolução. Eu espero que o mandato tenha atitude revolucionária na Câmara, para mostrarmos que representatividade importa”, afirma Alessandra.
Rhosângela Silvério, 59 anos, moradora de Viamão do bairro Lomba do Sabão. Educadora séries iniciais, gestora em Comunicação Institucional, cantora e participativa na política viamonense há longa data. Hoje construindo junto a Fátima Maria com o Mandato Coletivo estratégias saudáveis que possam contribuir para que nossa comunidade seja respeitada.
“Essa eleição demonstrou que através dessa nova forma de fazermos política é o caminho mais curto para que nossa comunidade seja reconhecida como parte integrante da sociedade, para manifestar suas lutas diárias e não serem denominados como indigentes ou vítimas da mesma sorte”, avalia Rhosângela.
Andrielle Prates, 24 anos, moradora de Viamão e estudante de Jornalismo pela UFRGS. Com uma trajetória trilhada em escola pública e inserida nas lutas sociais e estudantis, desde meados de 2016.
“Acredito que essa eleição significou uma resposta para o racismo estrutural e para mostrar pra sociedade que o povo preto tá unido e pronto para ocupar os espaços de decisões. O mandato, com certeza, vai servir para quebrar barreiras e colocar as necessidades da população preta viamonense como prioridade. Nada sobre nós, sem nós!, afirma Andrielle.