Marco Aurélio de Carvalho: Futebol, Paixões e Prerrogativas

Recentemente o Prerrogativas, nas inesquecíveis pausas permitidas pela vida, brincou de futebol com o legendário Politheama, mais o time de Chico Buarque

Facebook/Cristiano Zanin

Prerrogativas e Politheama

“Futebol é simples: quem tem a bola ataca; quem não tem, defende”, ensina o folclore do esporte mais popular do Brasil.

A frase se aplica também ao desafiante jogo dos profissionais da advocacia, escalados para intervir nos conflitos e nos dramas da vida cotidiana brasileira. Raramente estão com a bola e , por isso, cientes do indispensável ofício dos zagueiros, exercem a profissão como guardiões dos direitos individuas e de garantias como a presunção da inocência, do amplo acesso à Justiça e do pleno direito de defesa.

Nestes tempos sombrios, pode-se até comparar o trabalho do advogado ao talentoso Tostão, escalado para a Copa do Mundo de 70 pelo técnico João Saldanha , que percebia no craque revelado pelo América Mineiro admirável inteligência e singular visão estratégica de jogo.

Tostão sabia se deslocar e se movimentar, abrindo brechas na defesa adversária. Seu papel foi coroado no tricampeonato brasileiro, conquistado em 1970 no México. Entre inúmeras e memoráveis jogadas, foi Tostão, de costas para o gol, que avisou a Pelé, indicando com o braço, que desse o passe para o capitão Carlos Alberto completar a goleada contra a Itália naquele que é considerado um dos lances mais bonitos do futebol mundial (começa com uma sequência desconcertante de dribles de Clodoaldo, na intermediária, e está disponível no youtube).

A despeito de movimentos semelhantes de reação contra o atropelo das regras constitucionais, sob o nobre argumento de combate à corrupção, um grupo de advogados, sem viés partidário, vem debatendo as consequências sociais do atual quadro institucional brasileiro. A premissa é: não se pode interditar a defesa, pois nenhum time é capaz de jogar sem ela.

Este grupo, ainda não institucionalizado, reunido sob o nome de “Prerrogativas”, mostra-se inconformado diante de inúmeras ilegalidades cometidas recentemente, que vão desde a escuta e invasão de escritórios de advocacia , de conduções coercitivas desnecessárias, de prisões preventivas ilegítimas e midiáticas, até gravações e vazamentos de conversas alheias aos objetos legítimos de investigação.

Sob o manto da luta contra os desvios de recursos públicos, em que pese alcançar políticos relevantes ou atores socialmente aquinhoados do ponto de vista material, a (re) interpretação das regras do jogo causa alertas para toda a sociedade. Se o direito de defesa é relativo, se não há garantias absolutas para admitir a presunção da inocência, os mecanismos que hoje vem sendo praticados e admitidos vão se consagrar definitivamente como normas para enquadramento de qualquer indivíduo. Tais arroubos, que já vinham alcançando os mais desfavorecidos, subiram de patamar para atingir os membros do andar de cima da hierarquia social e perversamente colocarão todo cidadão à mercê dessas mesmas práticas.

Aplica-se, hoje, de forma assustadora e indiscutível , um novo Direito Penal , em que o acusado é execrado publicamente, às vezes sem que um único inquérito sequer tenha sido contra ele instaurado…

No mais das vezes, inclusive, reputações de inocentes são destruídas sem qualquer tipo de preocupação, cuidado ou reflexão.

Quanto ao futebol e ao direito, vale recorrer a Nelson Rodrigues. Com suas nuances, os movimentos de ataque e defesa de uma partida de futebol podem se transformar em episódios “épicos, memoráveis, grandiosos”, sob o divertido exagero poético do tricolor carioca Nelson Rodrigues. O cronista registra, com extrema reverência, o fato de que “a mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana”. E numa crônica de 1963 completaria: “se o jogo fosse só a bola, está certo. Mas há o ser humano por trás da bola, e digo mais: – a bola é um reles, um ínfimo, um ridículo detalhe. O que procuramos no futebol é o drama, é a tragédia, é o horror, é a compaixão”.

Recentemente o Prerrogativas, nas inesquecíveis pausas permitidas pela vida, brincou de futebol com o legendário Politheama, mais conhecido como o time de pelada do Chico Buarque. Naquela tarde de sábado estavam presentes os elementos dramáticos do futebol – sim, não se trata de exagero, uma pelada tem mesmo contornos shakespearianos. Sem mencionar que já existia ali um mito a ser reverenciado, dentro e fora de campo.

A disputa, renhida, foi submetida ‘a regras decididas coletivamente. Todos os jogadores reuniam legitimidade para pedir falta ou anotar qualquer irregularidade. O adversário poderia argumentar, rebater e discutir abertamente a materialidade do lance. Réplicas intermináveis eram garantidas. Mas o melhor deste ritual é que tudo se decidia na camaradagem. Veja que estão presentes, neste enredo, a luta encarniçada entre ataque e defesa.

E quando o cronista comenta uma partida, mas não revela o placar final do jogo, já de saída demonstra parcialidade e paixão. Assim como a vida é.

*Artigo inicialmente publicado no Brasil 247

Marco Aurélio de Carvalho é advogado

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