Margarida Salomão: ser professor no Brasil hoje

A palavra de Paulo Freire, patrono da educação brasileira, continua a nos impelir para a utopia de uma educação libertadora

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A segunda década do século XXI registra no Brasil, como no resto do mundo, uma campanha cujo mote principal é o “ódio à democracia”, para tomar emprestada a expressão e o conceito de Jacques Rancière. Como nos lembra o autor, a palavra democracia foi, em sua origem, usada como insulto por todos que viam no inominável governo da multidão por si mesma a ruína de toda ordem legítima. No caso brasileiro, o advento do governo Bolsonaro realiza a expressão vitoriosa desse sentimento de “retorno da ordem”.

Uma das versões mais estridentes do ataque à democracia ocorre na educação. “Partidários” da “escola sem partido”, que investem também contra o que chamam de “ideologia de gênero”, ameaçam não apenas a autonomia pedagógica de professores e escolas, mas repelem no mesmo ato dois importantes avanços da recente evolução educacional brasileira.

Primeiro, a incorporação curricular dos conhecimentos que a boa historiografia e a boa ciência da sociedade trouxeram à consciência esclarecida; por exemplo, o desnudamento da gênese colonial do Brasil e a persistência de classe, racista, patriarcal, machista e escravocrata nas estruturas sociais que dela resultam e que a confirmam.

O segundo avanço é ainda mais perigoso: concerne à inclusão pela escola de todos os sujeitos que compõem (conflituosamente) a cena social brasileira. Especialmente, a mudança no perfil do alunado na educação superior pública (mais de 70% dos estudantes procedem de famílias com renda inferior a 1,5 salário mínimo; 51% se identificam como negras e negros) constitui uma experiência sem precedente de diversificação do topo da sociedade. Na opinião desses conservadores, uma novidade desnecessária.

O advento dessa transformação no Brasil gerou uma reação irracional e violenta dos grupos sociais que, nesse processo, se reconheceram como perdedores. Mesmo quando lhes faltava a razão. Afinal, entre os que defendem a vigilância autoritária dos professores pelos estudantes encontram-se virtuais beneficiários das mudanças socioculturais introduzidas pela educação democrática. No entanto, como bem argumenta Steven Pinker em sua defesa liberal do Iluminismo, o elemento que agrupa os conservadores não é nenhuma expectativa da validação racional de suas teses; é, antes, o coesionamento que obtêm em suas hostes pelo mero desfraldar de bandeiras. É de guerra (cultural) que se trata: não da contraposição de ideias que possam ser refutadas ou defendidas.

O quadro de ataque aos professores assinala também um movimento institucional em pinça. De um lado, a ação dos órgãos de controle, que buscam uma intervenção política nas estruturas educacionais sob a capa da “defesa do interesse público”. Dois desastres estigmatizaram esse ensaio autoritário: o primeiro, o martírio do reitor Luiz Carlos Cancellier, da Universidade Federal de Santa Catarina; o segundo, a tentativa do MEC de constranger as gestões universitárias federais pela sua asfixia orçamentário-financeira, praticada ao longo de 2019. Em ambas situações, a realidade da vida universitária prevaleceu sobre a gestualidade “gerencialista”, desprovida de qualquer razão de ser que não fosse a “vontade de poder” sobre a dinâmica educacional.

A outra ponta do ataque corresponde ao uso acrítico e descontextualizado dos resultados das avaliações educacionais de massa (como Ideb e Pisa). As alegações de “baixo rendimento” desconsideram o quão recente é o processo de universalização da educação básica no Brasil; o quão despropositado é praticar comparações com países que adotaram essa agenda há um século; o quão preocupante é o pequeno percentual de crianças na educação infantil; e desconsideram, principalmente, que a escola por si só não há de superar as enormes desigualdades sociais e regionais que caracterizam nosso país. O alegado “baixo rendimento” alimenta um discurso de desvalorização da educação pública e, por consequência, dos profissionais da educação, discurso injusto com a evolução positiva que se tem obtido, embora com velocidade menor que a desejada.

A insuficiência de desempenho caracterizada vai para a conta do professor; tanto é assim que o remédio para os males corresponderia à bonificação salarial dos profissionais que “melhorassem” os índices, ou o alívio na caixinha escolar para os estabelecimentos que progredissem coletivamente. Ledo equívoco que focaliza a árvore e desobriga os gestores de compreender a floresta de problemas que vicejam na sociedade e se manifestam na educação.

Somos hoje no Brasil 2,5 milhões de professores e professoras, dos quais 2,2 milhões na educação básica. Oitenta por cento da docência é constituída de mulheres e metade destas tem mais de 40 anos. A questão de gênero está centralmente colocada no debate da profissionalização da educação brasileira.

O piso salarial subiu de R$ 1.000 em 2010 para R$ 2.557 em 2019, um avanço importante, mas que ainda nos coloca entre os profissionais com as piores remunerações do mundo. O documento Education at a Glance divulgado para o ano de 2019 mostra que o gasto brasileiro por aluno e por nível de ensino está abaixo da média da OCDE. De acordo com o mesmo documento, o baixo custo por aluno no Brasil está relacionado aos baixos salários pagos ao magistério: o salário médio do professor é menor que na maioria dos países da OCDE e é também 13% menor do que o salário de qualquer outro profissional brasileiro com nível de instrução equivalente.

No entanto, documento da UNESCO (Relatório da Comissão Internacional sobre a Educação para o século XXI) já em 1996 dispunha que “para melhorar a qualidade da educação, é preciso, antes de mais nada, melhorar o recrutamento, a formação, o estatuto social e as condições de trabalho dos professores pois estes só poderão responder ao que deles se espera se possuírem os conhecimentos e as competências, as qualidades pessoais, as possibilidades profissionais e a motivação requeridas”. Como se vê, as medidas requeridas para a mudança de patamar no desempenho educacional envolvem levar a sério o processo de profissionalização do magistério: tornar a docência uma possibilidade atraente, que não só recrute os melhores e os mais vocacionados, mas que também os retenha na carreira.

A falta de atratividade da profissão levou nos últimos anos ao fechamento em massa dos cursos presenciais de formação de professores, que, praticamente, só resistem nas instituições públicas. No entanto a maior parte de novos licenciados brasileiros tem se graduado em instituições particulares, basicamente via educação à distância, com padrão de qualidade bastante discutível. Embora seja irrazoável desfavorecer a EAD, é necessário integrá-la em um conjunto de práticas complementares, como observa a Resolução 02/2015 do Conselho Nacional de Educação, que define as diretrizes curriculares para formação inicial em nível superior e para a formação continuada – esta mesma resolução agora sob ataque em favor de uma concepção pedagogicamente desidratada de formação para a docência (vide Nota do Fórum Nacional Popular de Educação, divulgada em 11 de outubro).

Na educação superior, somos 350 mil professores, dos quais mais de 100 mil trabalham em instituições federais, e foram recentemente descritos pelo ministro Abraham Weintraub como “zebras gordas”, que receberiam salários elevados (R$ 15 mil a R$ 20 mil, segundo ele) para uma baixa carga de trabalho. A extravagância da metáfora leva a pensar que o ministro talvez se identifique com um leão à caça. Seja como for, a designação desrespeitosa ilustra espantosa ignorância sobre a natureza da docência universitária.

Recorrendo novamente ao Education at a Glance, ficamos sabendo que os gastos públicos com ensino superior, que aumentaram 19% entre 2010 e 2016, continuam abaixo da média da OCDE: praticou-se em 2016 um gasto anual por aluno de US$ 14.200, inferior à média da OCDE, de US$ 16.100. Ainda aqui a remuneração dos professores é responsável por puxar a média para baixo.

No início do século XXI a educação superior federal duplicou suas matrículas de graduação, e o número de mestres e doutores formados no Brasil quadruplicou. O corpo de professores aumentou sua dimensão em 70%, crescimento inferior proporcionalmente à expansão obtida. Além disso, dedicam-se esses professores à pesquisa, ao desenvolvimento tecnológico, à extensão, oferecendo à sociedade um retorno que pode ser de até trinta vezes para cada real investido, em áreas estratégicas como saúde, energia, comunicações, ciências agrárias, desenvolvimento social, formação de quadros para a liderança política e econômica do país.

Reduzir esse trabalho à docência presencial na sala de aula é ignorar que, para entrar em campo, um professor, como um jogador de futebol (metáfora mais adequada), precisa se preparar. E o professor, quando sai de campo, também continua o jogo: corrigindo trabalhos, orientando estudantes, escrevendo livros e artigos, avaliando o trabalho dos seus pares, atualizando o seu Lattes.

Como vemos, não é fácil ser professor hoje no Brasil. As adversidades se sobrepõem. Fundamentalistas atacam o caráter laico (e público) da educação pública. Economicistas tratam a educação menos como exercício de um direito e mais como exigência de mercado, de preparação da força de trabalho para a economia do conhecimento. O atual governo escalou para o MEC quadros histriônicos e completamente alienados da realidade educacional do país.

A discussão acumulada jaz, nessa paisagem, como riqueza abandonada, inclusive a que é expressa nos marcos legais relevantes: a Constituição de 1988, a LDB, o Plano Nacional da Educação. Sem contar as resoluções das conferências nacionais. Sem contar a densa bibliografia produzida pelos órgãos educacionais no Brasil inteiro desde a redemocratização. E sem contar a produção acadêmica das universidades, a reflexão dos professores e professoras sobre sua experiência profissional.

E, no entanto, é nesse esse legado que nos apoiamos para transitar em direção a melhores tempos. A palavra de Paulo Freire, patrono da educação brasileira, continua a nos impelir para a utopia de uma educação libertadora. Até porque, como nos adverte esse grande mestre: “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é tornar-se o opressor”.

Margarida Salomão é professora universitária desde 1972, com doutorado e pós-doutorado pela Universidade da Califórnia, Berkeley. Foi reitora por dois mandatos da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Está deputada federal pelo Partido dos Trabalhadores de Minas Gerais desde 2013.

*Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil

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