O individualismo competitivo é a guerra de todos contra todos, por João Antonio Filho

A mera ideia de que todos têm as mesmas oportunidades desconsidera fatores como origem social, educação e contextos de desigualdade, escreve João Antonio da Silva Filho

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João Antonio: a supervalorização da competição também leva a um enfraquecimento dos laços de solidariedade

O mundo contemporâneo está cada vez mais marcado pela valorização do individualismo competitivo. Esse fenômeno, impulsionado por ideais neoliberais, defende que a competição acirrada é a principal força motriz para o desenvolvimento econômico. Segundo essa perspectiva, o sucesso individual é visto como resultado direto do mérito pessoal, ou seja, aquele que se esforça merece colher os frutos de sua dedicação. No entanto, tal visão ignora uma realidade essencial: as riquezas não são geradas isoladamente, mas por meio de um esforço coletivo. É a soma do trabalho de muitos que permite o florescimento da produção e, consequentemente, da riqueza.

Essa valorização excessiva da meritocracia, proposta pelos ultra-liberais, pressupõe que o mercado é o grande regulador da sociedade. Para eles, o mercado possui a capacidade de recompensar os mais capazes e punir os que falham, sem a necessidade de uma intervenção estatal. No entanto, como afirma o economista Paul Krugman, “os mercados não são perfeitos, e as pessoas podem ficar para trás sem que isso seja culpa delas”. Ou seja, a crença em um mercado perfeito desconsidera as desigualdades estruturais e a falta de oportunidades que impedem muitos de prosperar.

Ao colocar o mérito individual no centro das discussões sobre justiça social, os defensores desse liberalismo radical desconsideram o papel do Estado e das políticas públicas na promoção de igualdade. Como bem aponta o sociólogo Zygmunt Bauman, “a solidariedade não é o oposto do individualismo, mas sim seu complemento”. O desenvolvimento social e econômico, de forma sustentável, requer o reconhecimento de que ninguém avança sozinho. O esforço coletivo, promovido por trabalhadores, cientistas, artistas e empreendedores, é o verdadeiro motor de crescimento.

A questão da meritocracia, portanto, precisa ser contextualizada. De fato, muitos prosperam por seu esforço, mas o sucesso não pode ser analisado sem levar em conta as condições iniciais de partida. Como afirma o filósofo Michael Sandel, “a meritocracia pode ser cruel quando ignora a sorte e as circunstâncias da vida”. A mera ideia de que todos têm as mesmas oportunidades desconsidera fatores como origem social, educação e contextos de desigualdade.

Além disso, a lógica do individualismo extremo, centrada na competição, muitas vezes ignora as limitações dessa própria ideologia. Nem todos podem ser empresários ou empreendedores bem-sucedidos. A sociedade é composta por múltiplas esferas de atuação, que vão muito além da ideia de sucesso empresarial. Como a economista Mariana Mazzucato aponta, “não são apenas os empreendedores que inovam; a inovação depende também do papel ativo do Estado e de instituições públicas”.

A supervalorização da competição também leva a um enfraquecimento dos laços de solidariedade. Acreditar que o mercado, por si só, pode resolver todas as questões sociais gera um ambiente em que as desigualdades se acentuam. É o papel do Estado, como mediador, garantir que o progresso seja distribuído de forma equitativa. Como lembra o historiador Eric Hobsbawm, “a história mostra que o Estado é um ator essencial na regulação da economia e na proteção dos direitos sociais”.

Nesse sentido, a defesa de uma sociedade justa e igualitária não deve ser apenas a de uma meritocracia exacerbada, mas sim a de uma meritocracia regulada e consciente das limitações estruturais. É necessário criar condições para que todos possam ter acesso às mesmas oportunidades, e esse papel cabe ao Estado. Ele deve ser o responsável por garantir o acesso à educação de qualidade, saúde, e outros serviços essenciais que permitam o florescimento de todos.

Além disso, o Estado precisa intervir em situações em que a competição excessiva possa levar ao caos social. A ausência de um Estado regulador leva ao que o filósofo Thomas Hobbes chamou de “guerra de todos contra todos”, onde a anarquia impera e o tecido social se desintegra. A convivência harmônica entre as diversas classes e profissões só é possível quando há uma estrutura que favoreça a cooperação e não apenas a competição.

Por fim, o caminho para uma sociedade mais justa e próspera não está em uma competição descontrolada, mas sim na construção de consensos progressivos. É pela via do diálogo e do fortalecimento das instituições democráticas que se pode alcançar a harmonia social. O Estado deve atuar como um promotor do bem-estar coletivo, assegurando que todos tenham oportunidades iguais e que a riqueza gerada por muitos seja distribuída de forma mais justa e equilibrada.

Portanto, a ideologia do individualismo competitivo, quando não mediada por um Estado ativo, acaba por agravar as desigualdades e enfraquecer a solidariedade social. Apenas por meio de uma visão que reconheça o papel do coletivo e do Estado na promoção da justiça social, é possível construir uma sociedade verdadeiramente justa e equilibrada.

João Antonio da Silva Filho é mestre em filosofia do direito e doutor em direito público, conselheiro do Tribunal de Contas do Município de São Paulo e vice presidente da ATRICON – Associação dos Membros dos Tribunais do Brasil

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