Obrigado, Alexandre, por Aloizio Mercadante

Postura firme e correta do ministro do STF foi fundamental para impedir a tentativa de golpe

Reprodução / Reconversa

Mercadante destaca que juízes comprometidos com a proteção da cidadania e da democracia são atacados

Em sua monumental obra “Paideia”, que trata da formação histórica do “homem grego”, Werner Jaeger argumenta que, no período socrático, surgiram a democracia, a formação da pólis e a filosofia. A democracia, embora imperfeita e restrita, e a formação do cidadão grego confluíram para criar um impulso civilizatório que, até hoje, mesmo com suas limitações, serve de inspiração para os sistemas políticos do Ocidente.

Paideia não era uma educação acadêmica estrito senso. Mas uma educação que criava cidadãos críticos, comprometidos com os valores coletivos da pólis e com a manutenção de um Estado justo.

Dizia Platão, na República, que a única garantia efetiva que impedia os guardiões da pólis de se tornarem donos do Estado e o utilizassem para seus próprios fins —impedindo que “os cães pastores se convertessem em lobos que devorariam os rebanhos”—era justamente a Paideia, a formação totalizante dos membros da pólis.

No contexto histórico moderno, os grandes guardiões efetivos da democracia, para além das instituições e do sistema de pesos e contrapesos, são os próprios cidadãos, que informados e bem formados, defendem seus direitos individuais e coletivos e impedem a sempre presente ameaça da deturpação do exercício do poder.

Mas, o que acontece com as democracias quando a formação totalizante dos cidadãos, a Paideia, é destruída e corroída por dentro? O que acontece com a política e com os sistemas de representação quando a cidadania tende a se tornar uma massa atomizada, sem noção básica do “bem comum”, sem o sentimento de pertencimento social, sem o que Hegel chamava “Weltanschauung”, visão do mundo ou da totalidade da realidade que nos cerca?

Seguramente, a maneira mais insidiosa e eficaz de se destruir uma democracia é a de se corroer, primeiro, a cidadania que a funda e a sustenta. E é exatamente isso que está acontecendo em boa parte do mundo.

Vivemos um momento histórico de “anti-Paideia”. O século 21 está se tornando o exato oposto do “Século de Péricles”. O século 21 está se tornando o “século da neocolonização digital”.
As redes sociais desregulamentadas, controladas pelas big techs e seus interesses econômicos, comerciais e políticos estão corroendo as democracias pela via perversa e maliciosa da destruição da cidadania. Com algoritmos absolutamente infensos à transparência e ao controle democrático e legal, produzem e difundem informações em nível global que são absorvidas, muitas vezes acriticamente, por bilhões de pessoas.

Nessa lógica perversa, informações, muitas vezes falsas (fake news), são produzidas e difundidas para “bolhas específicas”, por elas mesmas criadas. Na realidade, as big techs e suas redes sociais estão substituindo o cidadão pelo consumidor atomizado de informações parciais, desconexas e, muitas vezes, falsas, concebidas para manipular temores e interesses específicos de segmentos demográficos, dificultando que decisões coletivas e democráticas, que levam em consideração o bem comum, sejam alcançadas.

No brexit, referendo histórico, o Facebook, hoje Meta, vendeu para a Cambridge Analytica, sem consentimento, dados sensíveis dos cidadãos britânicos. Incluía, obviamente, suas preferências, envio de mensagens e a criação de conteúdos direcionados, intervindo decisivamente para a vitória da saída britânica da União Europeia. Essa atuação foi um obstáculo a um real debate público, qualificado e democrático sobre um tema tão relevante para aquele país.

Assim, as big techs e suas redes sociais, ao substituírem o cidadão pelo mero consumidor, tendem também a substituir a imprensa e a política, reais e democráticas, por uma espécie de “micropolítica à la carte”, que manipula, degrada e polariza artificialmente a opinião pública. Por isso, é absolutamente vital que sejam submetidas a um controle legal e democrático que as tornem instrumento útil para a cidadania. O impacto gerado pelo tarifaço imposto pelo governo Donald Trump pode impulsionar uma articulação global, especialmente da União Europeia, da Ásia e do Brics, nessa direção.

No campo geopolítico, os ataques às democracias atingem o multilateralismo e as instituições que sustentam as regras da ordem global, e levam ao desrespeito sistemático de acordos, tratados e convenções internacionais por parte de alguns países.

Nesse sentido mais amplo e civilizatório que devemos entender o esforço de juízes como Alexandre de Moraes, e o empenho de uma instituição tão importante como o STF.
Em muitos países do mundo, assim como no Brasil, há uma ofensiva contra o Poder Judiciário, justamente por se colocar na “linha de frente” em defesa da democracia, da cidadania, dos direitos individuais e coletivos, da legalidade e do Estado democrático de Direito; e contra a tendência internacional de consolidação de autocracias, abertas ou veladas.

É por isso que juízes comprometidos com a proteção da cidadania e da democracia, como Alexandre de Moraes, são tão atacados e odiados, tachados de “ditadores” justamente por candidatos a ditadores.

Mesmo democracias que pareciam cultural e historicamente consolidadas, como a estadunidense, estão ameaçadas de colapsar e se tornarem autocracias. Agora mesmo, grandes escritórios de advocacia estadunidenses estão sendo ameaçados de retaliação caso promovam ações contra o governo norte-americano.

É preciso que nós, cidadãos brasileiros, entendamos que os posicionamentos de Alexandre de Moraes e do STF destinam-se, essencialmente, a defender nossa democracia, nossos direitos e nossa capacidade de participarmos, de forma pacífica e sem manipulações indevidas, dos debates públicos destinados a identificar, promover e defender o bem comum, como se fazia nas ágoras atenienses. E de participarmos de processos eleitorais não manipulados por algoritmos maliciosos, ódio e fake news.

A democracia interessa a quem é de esquerda, de centro ou de direita. Afinal, as verdadeiras democracias, fundadas na Paideia e no esclarecimento, interessam a todos nós. A democracia comporta e exige a diferença de opiniões e a liberdade de expressão e de reunião. Mas não pode conviver com a manipulação autocrática e perversa das informações, destinada a propagar a criminosa degradação da cidadania, da política e da razão. Não pode conviver com a “anti-Paideia”, e não resistirá ao “século do neocolonialismo digital”.

Portanto, devemos aplaudir o exemplo dado por juízes como Alexandre de Moraes, que, com descortínio e coragem, nos defendem. Moraes é um grande juiz porque é um grande cidadão do Brasil.

A postura firme e correta do ministro foi fundamental para impedir a tentativa de golpe que estava em curso no Brasil, e que começou com a narrativa para deslegitimar a lisura do processo eleitoral e das urnas eletrônicas, com o uso da PRF para impedir eleitores de votarem, além do uso abusivo da máquina pública para compra de votos, da convocação de acampamentos golpistas na porta de quartéis, e as tentativas de invasão de sede da Polícia Federal e de explosão de um caminhão de combustíveis. Por fim, a invasão da Praça dos Três Poderes e a descoberta de um plano que envolvia o assassinato do presidente Lula, do vice-presidente Alckmin e do próprio ministro Alexandre de Moraes.

As utopias, como escreveu Eduardo Galeano, são como o horizonte. Por mais que caminhemos em sua direção, nunca o alcançamos. As utopias, contudo, servem justamente para isso, para nos obrigar a caminhar. A caminhar no rumo correto.

Enquanto tivermos na vanguarda dessa caminhada interminável, porém imprescindível, com cidadãos como Alexandre de Moraes, estaremos bem. Nossa democracia estará bem.

Obrigado, Alexandre.

Aloizio Mercadante é presidente do BNDES. Foi ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República e ministro da Educação e da Ciência, Tecnologia e Inovação

Artigo publicado inicialmente na Folha de S. Paulo

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