Para vencer a “batalha cultural”: como podemos retomar a hegemonia?
“Precisaremos de um partido que incorpore a noção de cultura com centralidade em seus debates e que se organize como um movimento solidário”, afirma Márcio Tavares
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Assistindo a um dos debates entre as chapas que disputam a eleição de delegados ao 7º Congresso do PT notei que existe um balanço de conjuntura que permeia as avaliações de quase todas as chapas que estão na disputa: além de política, a partir do golpe de 2016 sofremos uma derrota cultural. No mesmo debate escutei a seguinte frase: “Perdemos a batalha cultural e com isso perdemos os corações e mentes da maioria da sociedade brasileira”.
Essa correta caracterização da natureza da derrota política que sofremos tem povoado os discursos da esquerda brasileira e, a partir da amostragem do nosso próprio debate, habita as discussões do Partido dos Trabalhadores. A dureza dessa avaliação reside no fato de que as forças mais retrógradas e autoritárias da política brasileira ganharam a disputa pela hegemonia cultural.
Debates que até poucos anos atrás pareceriam anedóticos hoje em dia ganham tons de seriedade com a chegada da extrema direita ao governo nacional – evidente que uma chegada fraudulenta à presidência, mas que não apaga a adesão a uma candidatura que representa o que há de pior em termos políticos, econômicos, culturais e civilizacionais. Desse modo, é preciso que a avaliação sobre a derrota que sofremos no campo cultural ganhe conteúdo para que criemos os instrumentos para retomar a dianteira da luta política e reconquistar a hegemonia cultural.
Em nosso país, ao menos desde 2010 as forças de extrema direita deram uma guinada em seu debate político e passaram a priorizar questões morais, comportamentais e culturais. A proeminência dessa abordagem política pela extrema direita não é uma exclusividade brasileira. Radicais de direita na Rússia, na Europa e nos Estados Unidos realizaram o mesmo movimento, que em linhas gerais busca estabelecer um novo corte da disputa política em que as divisões entre classe são substituídas por outras di-visões do mundo social.
O giro moralista e a tentativa de culpabilizar artistas, pesquisadores, feministas, imigrantes, pessoas étnica e racialmente não-brancas e LGBTs pelos enormes sofrimentos que os trabalhadores, as classes médias e os mais pobres são acometidos em tempos de capitalismo neoliberal, tornou-se instrumental também para a elite do 1% global que escapa das ameaças de uma insurgência em função da narrativa cheias de bodes expiatórios alternativas criadas pela extrema direita. No marco do ideário da extrema direita, são os agentes elencados acima que são responsáveis por abalar a ordem social, destruindo as tradições em favor de um suposto “globalismo” das diferenças.
Aos poucos acompanhamos essas elaborações políticas saírem das margens do debate público e do submundo da internet para ganharem espaço e disputarem a hegemonia política na sociedade brasileira. Desde o golpe de 2016, com o avanço da aliança entre mercado, mídia, forças armadas, fundamentalistas religiosos e parcelas do judiciário essa plataforma política eivada de erros, mentiras e preconceitos passou ao centro da ribalta das discussões sobre o país. Foi com base nesse ideário que setores extremamente conservadores, reacionários e fundamentalistas ligados a uma visão política de coloração fascista conseguiram chegar a ocupar a presidência da república.
Assim, para além do diagnóstico necessário do que são e do que defendem esses agentes políticos, é preciso que a esquerda busque realizar um balanço concreto acerca das razões de termos sido derrotados nesse campo da luta política. Trata-se de um elemento fundamental da nossa reorganização em vistas de recuperar o terreno perdido e nos reconectar com as maiorias sociais.
No Brasil, esse giro das questões políticas em direção aos valores é usualmente chamado de “batalha cultural” e nos Estados Unidos de onde o termo foi importado usualmente se fala em “guerras culturais”. É importante salientar que a descrição do conceito ultrapassa os muros da nação, pois o movimento de insurgência neofascista opera atualmente em escala global. Retomando a avaliação conceitual, é preciso registrar que em nosso país essa conotação de guerra ficou bastante restringida à extrema-direita, mas é ilustrativa para compreender as táticas políticas usadas por esses grupos radicalizados e reacionários. Contudo, enquanto a extrema-direita travava uma guerra contra os valores do humanismo progressista, a esquerda não compreendeu a urgência da dimensão política fundamental de defender à altura os valores pelos quais os progressistas lutam desde o iluminismo.
Evidentemente, que muitas razões conjunturais e estruturais contribuíram para abrir espaço para a emergência da extrema direita, contudo a negligência da esquerda em enfrentar decididamente o surgimento do neofascismo e sua plataforma, fez com que ideias como “ideologia de gênero” e a negação das mudanças climáticas que não dispõem de qualquer respaldo acadêmico e/ou científico saíssem das margens do debate político e entrassem no centro dos debates com impactos atuais como a censura às produções culturais com temática LGBT e aumento dramático das queimadas na Amazônia. É importante verificar que o conjunto de concepções que formam o corolário da visão de sociedade apresentada pela extrema direita nacional estão baseadas, em primeiro lugar, num combate ao pensamento crítico e científico, à inteligência e à expressão artística e na rejeição às diferenças.
Desse modo, para compreender a natureza da “batalha cultural” a que fomos submetidos e formar uma estratégia para vencê-la é preciso que nos voltemos para a própria ideia de cultura, pois esses grupos neofascistas associam a ideia de produção e fruição de bens culturais (que a esquerda considera um direito fundamental) como uma forma de subversão das tradições. Cultura é associada diretamente com a sedição para esses grupos. Entretanto, enquanto corporeidade de uma plataforma política o conceito de cultura foi escassamente apreendido no campo de esquerda. Usualmente, em nosso campo se relaciona cultura com o modo de vida de um determinado coletivo.
Trata-se de uma perspectiva tão ampla que se torna pouco manejável para a compreensão acadêmica e, também, para o entendimento e formulação das dinâmicas políticas. De outra parte, outra apreciação comum da ideia de cultura é a que a relaciona diretamente em relação com as práticas e criações artísticas. Nesse caso, a caracterização é igualmente insuficiente, mas pela redução dramaticamente de envergadura conceitual da ideia.
Entre essas duas perspectivas emerge uma terceira que associa a cultura com a dimensão simbólica da vida em coletividades humanas. Os valores compartilhados, a linguagem, a produção artística, a sexualidade e até mesmo a forma de organização da vida material são balizadas pela cultura. Para usar um jargão do marxismo, poderíamos dizer que entendida a partir da conceituação acima, a cultura é tanto base quanto superestrutura, isto é, ela é condicionada e condiciona a vida de um corpo social. Assim, a cultura jamais é um conceito fechado, porque as culturas sempre estão em contato umas com as outras. Avançando para a dinâmica das sociedades contemporâneas, poderíamos dizer que existem múltiplas culturas que se correlacionam no âmbito complexo de uma sociedade.
Compreender esses elementos nos permite verificar algumas limitações nos debates sobre cultura que permearam a cena pública brasileira nos últimos 20 anos e seus eventuais impactos políticos. A ideia de política cultural no país foi povoada até o fim do milênio com uma associação direta com a elaboração e desenvolvimento de políticas para as artes. Após 2003, o conceito de cultura adotado para a elaboração das políticas culturais foi sobretudo de origem antropológico. Contudo, a noção correta do reconhecimento de que todos os seres humanos são providos de cultura e de que não é tarefa do Estado “levar cultura” para nenhum grupo ou território, foi pouco acompanhada de uma elaboração sobre as pressões que a globalização de corte neoliberal realizava sobre as culturas em todo o mundo. Isto é, o reconhecimento da diversidade cultural existente no território em uma política cultural robusta precisa ser acompanhado de uma visão da permeabilidade dessas culturas aos distintos estímulos globais.
Em outras palavras, em um contexto dominado pelo neoliberalismo em que a dinâmica das relações sociais é bombardeada diariamente por impulsos dominados por valores como individualismo egoísta e a competição, estímulos que associam sucesso e fracasso exclusivamente ao desempenho pessoal, necessitam no âmbito da cultura (em um sentido que ultrapassa a noção estrita de políticas culturais) de uma articulação de políticas e ações que apostasse na construção da vida em sociedade em parâmetros alternativos, mais solidários e menos angustiantes.
Ao não sermos capazes de avançar para além da noção da cultura como um recurso em direção à cultura como política, deixamos o campo amplo do convívio social ser dominado por valores regressivos e, assim, a extrema-direita encontrou o campo fértil para implementar sua “guerra cultural”.
Talvez, nesse ponto, seja interessante retornar a Gramsci e o seu conceito de hegemonia, sobretudo, quando ele afirmava em Introdução à filosofia da práxis que a cultura ocidental tornou-se hegemônica sobre as demais. Essa formulação é importante porque possibilita retomar a ideia de que cultura não se trata de uma totalidade singular, mesmo no interior de uma mesma sociedade. Para Gramsci, a cultura respondia a uma combinação entre as relações de intercâmbio (desiguais) entre as culturas. Nesse processo, uma cultura usualmente se converte em hegemônica e é capaz de impor vários de seus marcadores simbólicos e valores para as demais.
Dessa maneira, a cultura consagra-se como o espaço privilegiado para a disputa pela hegemonia. O privilégio de um economicismo rasteiro – que acreditava que a distribuição de bens materiais seria suficiente para a transformação das mentalidades – no âmbito dessa concepção complexa da disputa por corações e mentes e em última instância dos rumos da sociedade foi uma das razões para termos perdido a hegemonia mesmo tendo realizada tanto pelos que mais precisam. Enquanto privilegiamos os aspectos econômicos, a direita trouxe o debate político para aspectos culturais.
O primeiro dado dessa disputa que viria mais tarde a tomar a ribalta da política nacional foi quando o tema do direito ao aborto se converteu em elemento de monta na disputa do 2º turno presidencial de 2010. Entretanto, foi a partir de 2013 que a polarização política a respeito dos valores que organizam nossa vida em sociedade ganhou contorno mais nítidos, principalmente após a chegada do pastor Marcos Feliciano à presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara e em seguida com as jornadas de junho que consolidaram a polarização política no país.
Analisando o quadro verificamos que não compreendemos que conforme oferecíamos melhores condições de vida para a população, ela se voltava para outras questões políticas. Não se tratava de aspirar somente por mais políticas públicas, se tratava de reconstruir a forma de ver e se ver no mundo. No momento em que abdicamos de realizar a disputa pelos valores dominantes abrimos espaço para que grupos retrógrados realizassem esse debate e avançassem sobre eles.
Entretanto, isso não significa que ficamos completamente inertes com relação a “batalha cultural”. É fundamental salientar que a formulação das políticas culturais durante os governos de Lula e, com menor ênfase, de Dilma tomaram o rumo correto de favorecer o destampamento do fazer e dos saberes culturais espalhados pelos mais diversos territórios do país. Evidentemente, que esses processos poderiam ter sido ainda mais abrangentes – e precisavam ter sido – caso os investimentos tivessem sido mais expressivos. Acertamos também no investimento na educação, sobretudo, nas universidades.
A cultura e a educação, sobretudo a produção artística e as universidades, foram transformadas em inimigas do bolsonarismo justamente pela sua capacidade em constituir elementos de disputa da hegemonia cultural dados os enormes avanços de novos agentes sociais originados pelas políticas públicas que desenvolvemos. A arte e as universidades são inimigas, pois elas são os espaços que restam a ventilar narrativas contra-hegemônicas.
Contudo, e aí mora a necessidade de nosso balanço, em outros campos como o da comunicação e das políticas de direitos humanos falhamos ao não avançarmos mais decisivamente. Ao contrário da Argentina, não construímos uma justiça de transição que punisse os criminosos da última ditadura e fomos tímidos nos avanços em direitos para as minorias. As excelentes políticas para área desenvolvidas na Secretaria de Direitos Humanos e na Comissão de Anistia sofreram com a subalternização de seus objetivos frente à agenda global de governo. No âmbito da comunicação, a situação é ainda mais precária, pois a política implementada para a área foi absolutamente desastrosa e avanços praticamente não podem ser apontados. Talvez, o único acerto importante tenha sido a criação da EBC.
No âmbito de um texto como esse, não cabe a realização de um balanço completo, mas é importante salientar que todos os elementos elencados acima organizam políticas capazes de intervir na cultura através daquilo que Bourdieu chamava de formas de di-visão do mundo e que são fundamentais na disputa por hegemonia. Não é possível compreender as razões de termos sido derrotados na “batalha cultural” após um ciclo exitoso de governo, se não nos voltarmos para esses elementos da organização da cultura no Brasil contemporâneo. As razões para a virada política acontecida não se resumem às nossas ações evidentemente, mas o acúmulo de forças para defesa da Constituição e da democracia estaria em outro patamar caso tivéssemos priorizado a organização de uma robusta política de cultura.
Compreender o percurso nos levou até a derrota política e cultural é o que nos oferecerá as armas para retomar a ofensiva política em defesa dos setores afetados e ofendidos pelas políticas postas em curso pelo bolsonarismo. A partir dessa leitura também podemos realizar comparações mais efetivas e buscar novas formas de atuação política. Estão aí exemplos como os da Bolívia e da Argentina que podem nos ajudar na difícil tarefa que temos a empreender para retomar a hegemonia.
Como no Brasil os impulsos globais do neoliberalismo conjugados com o peso histórico de uma construção social excludente e marcada pela abolição inconclusa da escravidão, formam um conjunto de estímulos que favorecem uma cultura de ódio e exclusão, precisaremos de muito esforço para conquistar os corações e mentes para um projeto de superação desse modelo nefasto de sociedade. São anos em que as pessoas são bombardeadas por estímulos que levam ao extremo individualismo, ao egoísmo e a apatia frente ao sofrimento do outro.
Precisaremos de um partido que incorpore a noção de cultura com centralidade em seus debates e que se organize como um movimento solidário, precisaremos que nos governos em que participamos um novo ciclo de políticas de cultura que esteja orientado para superar a hegemonia de valores regressivos e conservadores.
Não se trata de uma luta fácil, pois o retorno da censura e a perseguição aos artistas, às universidades, aos educadores e pesquisadores mostram que as forças obscurantistas poderão afetar dramaticamente alguns os dispositivos de democratização da produção de cultura e da disseminação de valores humanistas que desenvolvemos nos últimos anos. Porém, somente entrando no terreno de luta e combatendo a cultura do ódio com uma nova postura e estratégia política é que poderemos reverter o atual quadro de predomínio do reacionarismo e vencer a “batalha cultural”.
Márcio Tavares é Historiador, curador e Secretário Nacional de Cultura do PT
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