Racismo religioso | O que o caso da mãe de santo agredida revela sobre nossa cultura
Conversamos com pai de santo e mãe de santo candomblecista e uma filha de santo umbandista, que também é professora da rede pública, sobre essa situação no Brasil
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Ana Clara, Agência Todas
Nesta semana, os áudios vazados do presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, revelaram a ofensa dirigida à mãe de santo Adna Santos, conhecida como Mãe Baiana. Ela ocupa o cargo de Coordenadora de Políticas de Promoção e Proteção da Diversidade Religiosa da Subsecretaria de Direitos Humanos e Igualdade Racial no Distrito Federal.
“Uma filha da puta de uma macumbeira. Uma tal de Mãe Baiana, que ficava aqui infernizando a vida de todo mundo. Além de fazer macumba para mim, essa miserável está querendo agitar invasão aqui de novo.” […] “Não vai ter nada para terreiro na Palmares, enquanto eu estiver aqui dentro. Nada. Zero. Macumbeiro não vai ter nenhum centavo.” [Sérgio Camargo]
Adna revelou que vai procurar a polícia para denunciar o crime de discriminação religiosa, além de procurar instituições federais. Na última quarta-feira, o PT e partidos de oposição protocolaram um pedido no Ministério Público Federal para investigar a parte da fala do presidente que também ataca o movimento negro, chamando de “escória maldita”.
Racismo religioso
Esse ataque à mãe de santo é uma prática de preconceito religioso, infelizmente, muito comum no país. A cultura racista brasileira tem empurrado historicamente religiões de matriz africana para a condição de inferioridade, de seitas, ou de algo ilícito.
Fabio Mariano da Silva é pai de santo candomblecista, pesquisador e professor. Iniciado há mais de vinte anos na religião, ele menciona uma prática comum dos brasileiros que buscam ajuda em terreiros de matriz africana, de forma ‘escondida’.
“Então a pessoa vai à igreja ou vai ao culto aos domingos, e, durante a semana, ela procura o pai de santo. Essa é uma prática que a gente conhece muito bem”, revela Fabio.
A história do Brasil demonstra a perspicácia das instituições em mascarar o racismo religioso — quando, por exemplo, para abrir terreiros era necessário autorização da polícia. Ou até mesmo na configuração da distribuição dos centros e terreiros pelas cidades — que acabam sendo expulsos dos grandes centros urbanos para lugares afastados.
As consequências dessa combinação de racismo estrutural e preconceito religioso fazem o povo preto sofrer duplamente. “Além de atacado em sua cor, o povo preto é atacado em sua cultura ancestral, não podendo professar e praticar sua fé, mesmo dentro do sagrado”, pontua Neide Jane Prado de Carvalho, secretária estadual de combate ao racismo do PT-RJ e candomblecista.
Dentro da escola. Medo e vergonha.
Nas periferias, o preconceito religioso também se manifesta das mais diversas formas. Desde o Ensino Fundamental, estudantes passam anos escondendo o fato de serem adeptos à religião de matriz africana. “Até aqueles alunos cujos familiares são babalorixás ou yalorixás e, mesmo atuantes na religião, participam das ‘brincadeiras’ feitas pelos colegas por medo de serem ridicularizados”, relata Ana Lúcia de Campos, professora de Ensino Fundamental II e Médio da rede pública municipal de São Paulo.
Umbandista desde que nasceu, Ana Lúcia é filha de santo e tem mais de 50 anos de vivência na religião. Ela aponta a importância do conhecimento da história das religiões africanas para o desenvolvimento das crianças, principalmente para as negras.
“Amplia possibilidades pois dá ao povo negro (nativos também) a visibilidade que nos é constantemente negada e que todos merecemos alcançar”, reforça.
A luta diuturna contra o racismo
Em sua luta diária por uma sociedade mais humana, Ana Lúcia também coleciona relatos que foram marcantes em sua trajetória dentro da escola. Um aluno do 9º ano, que passara o ensino fundamental inteiro escondendo suas origens religiosas, propôs como tema do TCA (Trabalho Colaborativo de Autoria, uma espécie de TCC de fim de curso) discussões sobre religiosidade.
A proposta do aluno foi criar uma mesa redonda com representantes de diferentes doutrinas: um padre ,um pastor e uma Yalorixá (avó do aluno). Só que, no dia do evento, muitas reviravoltas: o pastor recusou-se a debater com os outros dois representantes; e a Yalorixá não pôde participar.
“Então o aluno simplesmente assumiu a fala na mesa redonda e debateu inúmeros assuntos com o padre. Foi impressionante!”, exclama a professora.
Outro caso, foi quando ela realizou um trabalho com músicas de Chico César, Sandra de Sá e Paralamas do Sucesso. “Foi na época que pranchas de cabelo viraram febre fazendo aumentar absurdamente os casos de bullying”, relembra.
O resultado da iniciativa cultural e educacional foi percebido meses depois quando as meninas que ofendiam as colegas de “cabelo duro” iniciaram o ano letivo usando diferentes tipos de tranças ou cabelos ao natural.
A garantia de um Estado Laico e, consequentemente, uma educação laica é fundamental para combater o racismo religioso, conforme aponta Neide, secretária estadual de combate o racismo. Além de outras medidas como a redução da desigualdade social e investimento em educação, saúde,trabalho e renda, o acesso ao conhecimento das histórias das religiões africanas poderia salvar vidas.
“O nosso sagrado seria respeitado como qualquer outro templo religioso, sem essa ideia eurocêntrica e cristã de que tudo o que não se assemelha às suas práticas é errado, ruim e, pior ainda, demonizado”, conclui Neide Jane.