Saudades do chefe: funcionários lembram suas histórias com Lula
Integrantes da equipe do ex-presidente contam como é a rotina com e sem o ex-presidente
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As primeiras semanas de trabalho no Instituto Lula (IL) após a prisão do ex-presidente foram especialmente duras para os funcionários do local. O chefe sempre ativo, cheio de demandas e com uma agenda agitada, deixou em São Paulo órfãos de um superior afetuoso.
O trabalho por lá continua intenso. Mas sem o ex-presidente, tudo muda. “Isso aqui com ele é uma coisa e outra sem. O Lula irradiava tudo isso aqui. Temos o aspecto formal da relação, que consideramos, mas a verdade é que somos como uma família, porque é muito afeto, é muito amor”, conta a secretária pessoal de Lula, Cláudia Troiano, mais conhecida como Claudinha.
Em boa medida o vazio deixado pelo chefe tem sido preenchido pelas milhares de cartas que os funcionários já receberam, e tantas mais que chegam todos os dias. É como gerenciar um fã clube, e são eles os responsáveis por separar uma a uma, ler e enviar parte para a sede da Superintendência da Polícia Federal no Paraná, onde o ex-presidente está preso.
A reportagem da Carta Capital conversou com as cozinheiras do Instituto, a secretária pessoal de Lula, assessores, técnicos e trabalhadores do entorno do ex-presidente sobre as memórias compartilhadas com o chefe e o sentimento após sua prisão.
Eles não se acostumavam facilmente com sua presença. Hoje, tampouco com a ausência. A extrema proximidade com um dos líderes mais populares da história do País ainda causa, até nos mais experientes, certa surpresa. “Nossa, é o Lula”. Isso porque a intimidade no trato do dia a dia é tal que a figura do chefe, do presidente e do amigo são indissociáveis.
A equipe divide conosco alguma de suas histórias com o ex-presidente, talentoso na arte de criar relações pessoais.
Brunch X Churrasco
Signo de escorpião, o ex-presidente comemora o aniversário no fim de outubro, no dia 27. Em 2016, as funcionárias do Instituto Lula combinaram secretamente um brunch, refeição que substitui e une o café da manhã e o almoço, mais conhecida fora do País.
A ideia era fazer uma “festa primaveral” para os cumpleaños do chefe. Ele desconfiou. Flagrou a confabulação que definia detalhes como uma mesa cheia de pães, carnes e sucos, e ornamentos como flores do campo e bexigas. Lula brincou: “Tão de greve?”.
Dia 27, o ex-presidente chega ao instituto com a ansiedade estampada na cara de todo aniversariante que finge não saber o que estar por vir. Mas o sorriso deu lugar a um semblante contrariado, conta Bárbara de Paula Faria, responsável pela área de tecnologia do instituto.
“Ele emburrou na hora. ‘O que é isso? Tá parecendo festa de adolescente’, ele disse. A gente explicou que era um brunch, e ele fez uma cara de questionamento, num misto de indignação e dúvida”.
Mas foi Claudinha quem ficou com o pepino na mão. “Lula me perguntou onde estava o churrasco, disse que festa tinha que ter picanha, costela, asinha de frango. E eu respondi que eram dez e meia da manhã. Falei: ‘presidente, é um brunch, com comidas mais sólidas e outras de café. Não teve jeito. Ele não me perdoa por isso.”
Meados do dia 27 de outubro do ano seguinte, Lula chama a secretária na sala e pergunta se elas estavam preparando algo para seu aniversário. “Falei para ele que se estivéssemos não iria contar. Ele respondeu: tudo bem, pode manter o segredo, mas não inventa o tal de brunch, tá?”. O ex-presidente, é claro, abrasileirava a refeição gringa: pronunciava “branxi”.
A sandália (e o terno) do outro
O goiano Paulo Henrique Vieira da Silva é guardador de carros na avenida Nazaré, localizada bem em frente ao Instituto. Descobriu que trabalhava nas redondezas do instituto do ex-presidente justamente em um dos aniversários de Lula.
A militância chamava pelo aniversariante do lado de fora do prédio, e para a surpresa de Paulinho, Lula apareceu. “Eu queria ter tirado uma foto. Minha família ia ficar em choque sabendo que eu trabalhava perto dele.” Naquele dia não deu certo, mas passado um tempo o Baianinho, um dos funcionários mais antigos de Lula, chamou o guardador de carros para bater a tal foto.
“Ele saiu aqui na rua e ficamos 40 minutos conversando. Perguntou tudo da minha vida, família, por que eu vim para São Paulo, e comentou um discurso que o Kofi Annan tinha feito aquele dia. Eu nem sabia quem era Kofi Annan. Eu contei que meu sonho era pilotar os aviões que jogavam veneno nas lavouras lá em Goiás. Para mim isso era normal, mas percebi que ele achou estranho. Eu fiquei muito feliz porque era um manobrista conversando com um presidente. E ele é muito legal.”
As conversas de portão entre os dois pelas manhãs se tornaram rotina. Chegado o fim do ano, Paulinho foi convidado para a festa de fim de ano da firma. Lula chama o amigo de canto e diz que quer apresentar um rapaz. Era João Pedro Stédile, líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).
“Ele (Stédile) me explicou que esse negócio de veneno já não era mais assim. Falou que devia tentar ser piloto particular, fazer um curso se era isso que eu queria. Depois nos papos com o Lula ele me aconselhou a estudar direito, que é o que eu estou fazendo agora. Sempre pergunta se estou indo bem, e diz para eu me formar logo que ele está precisando de advogado. Ele se preocupa com as pessoas. O Lula tem essa coisa de vestir a sandália do outro.”
Paulo está estudando direito na Faculdade Zumbi dos Palmares, instituição comunitária e de cunho social que conheceu através de Lula. Até pouco tempo, o manobrista não conseguia acompanhar as audiências nos tribunais porque não tinha terno, traje exigido nesses ambientes. Pediu a Lula, que deu os ternos e um pitaco.
“Ele me deu quatro ternos, um mais chique que o outro. Acho que é Dolce Gabbana, né? Eu fiquei em choque. Não podia usar aquilo. Tinha pedido um terno velho. Ele trouxe e disse que um e outro eram uns dedinhos menores do que o meu tamanho, mas que ele tinha escolhido esses porque eu preciso fazer exercício físico e me cuidar melhor.”
Tem ovinho?
Após o falecimento de dona Marisa Letícia, esposa de Lula, a convivência entre os funcionários e o chefe se intensificou. Lula passou a ir embora mais tarde, e a fazer quase todas as refeições no local junto com a equipe.
Está nas mãos das cozinheiras Vaneide Maria da Silva, a Neide, e da Lourdes (Dantas Barbosa) dar conta do cardápio. Come-se de tudo: carne de porco, frango com batata, tapioca, banana.
Elas contam que era comum Lula descer na cozinha antes do almoço ser servido e também fazer a refeição por lá. “Ele gosta de comer lá porque diz que a família sempre foi grande e faz parecer que ele está em casa. Então ele vai lá e puxa papo enquanto a gente tá trabalhando, fica contando história”, conta Lourdes.
Quando o Instituto recebe algum convidado, as funcionárias preparam um cardápio especial. Nem sempre o número de convidados bate com o que está na agenda, e a orientação é sempre a mesma: botar mais água no feijão.
“Quando aparecem mais pessoas que os convidados trazem sem avisar, ele aparece na porta e fala que pra ele pode fritar uns ovos. Mas a gente faz mais comida pra todo mundo. Não tem problema. E não é só quando ele acha que pode não ter comida que ele pede. A gente faz camarão na moranga e ele pede ovo frito em cima. Não tem solução”, fala Lourdes.
O primeiro recado vindo do chefe após a prisão em Curitiba chegou no dia em que Claudia fazia esse relato. O pedaço de papel escrito à mão dizia: “Querida Claudinha, estou com saudade de você e da nossa comida. Beijo para todas e todos do IL, Lula.”
Hiperativo define
A disposição de Lula é uma característica que todos àqueles que vivem a sua volta conhecem, e em especial os que trabalham com ele. “Quando ele chega, cumprimenta a todos de maneira muito afetuosa. Sempre beija a nossa testa, sai da sala dele e entra na nossa, pergunta como estão as coisas, dá um conselho. Ele está o tempo todo dando conselho, até quando a gente não pede”, conta Claudia.
Ainda assim, no começo do ano, uma agitação fora do habitual chamou a atenção de todos. “Foram dias que ele nos chamava muito mais, descia da sala o tempo todo, fazia pergunta em cima de pergunta, chamava atenção sobre coisas específicas e sem grande urgência, olhava na janela, fazia observação se via alguém trabalhando lá em baixo. Ele não parava quieto. Nós achamos estranho, mas não questionamos.”
Não era pacífico o momento pessoal e político vivido pelo ex-presidente. Lula tentava reverter no Tribunal Regional Federal da 4ª região a condenação do juiz Sérgio Moro no processo do tríplex. Mas aquela agitação extrema do chefe era incomum.
A resposta para o comportamento atípico veio do próprio. “Ele sentou por aqui (área externa do instituto, onde funciona uma espécie de espaço de convivência coletivo) e disse: sabe o que é, eu tô tomando um tal de termogênico que me deram na academia e que parece que ajuda na física (nome que o presidente usa para os exercícios físicos)”, conta a secretária.
Termogênicos são substâncias presentes em diversos alimentos e de modo geral usadas para queimar gordura. Os produtos disponíveis no mercado são vendidos para quem procura acelerar o metabolismo.
Os funcionários, em coro, pediram para Lula interromper o uso das cápsulas imediatamente. “A gente só falou: não presidente, pelo amor de Deus, o senhor não precisa disso.”
Lula deixou o pote de termogênicos de lado e a rotina no instituto voltou à normalidade, o que não significa marasmo. “Ele já é hiperativo”, fala Paulo Henrique, responsável pela agenda do chefe de todos. “É, hiperativo define”, completa Gabi, a assessora de imprensa.
Mal humor só quando o Corinthians perde
O ex-presidente é um corintiano apaixonado, todos sabem. Um dos poucos pedidos feito por Lula à Policia Federal antes de ser preso foi ter acesso a uma televisão no local onde ficaria, em grande parte para poder assistir à final do campeonato Paulista, que para sua alegria o Corinthians venceu nos pênaltis o rival Palmeiras.
Quando queria resenhar sobre futebol, Lula recorria a Calinka Lacort Cassão, recepcionista do Instituto. Além de trabalhar na recepção, o jeito doce a afetuoso de Calinka fez com que se tornasse a corresponde majoritária do ex-presidente. E-mails e cartas que chegam aos montes todas as semanas no escritório passam pela moça. Ela responde uma a uma.
“São cartas de muito carinho, muito afeto. E ele gosta. Algumas são tão bonitas que depois a gente fala para o presidente ligar para a pessoa, ou ele mesmo pede o contato. É emocionante e divertido. A gente fica estática observando e imaginando a pessoa do outro lado da linha ouvindo aquela voz característica dele falando “alôôô, aqui é o Lula.”
Calinka reafirma que todos os dias o presidente fala com todos assim que chega. Nas raras exceções, todos desconfiam, e o motivo em quase todos os casos é algum jogo que o Timão perdeu.
“Ele é doido pelo Corinthians. Por futebol, aliás, mas o Corinthians é um caso. Esses tempos ele chegou todo alegre, e eu percebi que ele tava mais efusivo, mas deixei pra lá. Depois ele volta aqui na entrada com a cara fechada e reclama porque eu não tinha reparado na jaqueta nova do Corinthians que ele tinha comprado. Depois a gente riu disso.”
Todos os funcionários dizem que sim, as broncas acontecem, com uns mais, outros menos, mas que não se lembram de ter havido mal estar. O ex-presidente dá a bronca e ele mesmo tenta reverter na sequência. “Às vezes ele tá dando uma enquadrada em alguém e piscando para outra pessoa, como se fosse mentira. Em outras, ele e sai e volta rápido falando pra gente pagar um café pra ele”, fala Claudinha, que a responsável por pôr panos quentes quando alguém emburra.
Relação pessoal (com o povo)
Um dos fundadores do PT, o secretário-geral da presidência da República de 2003 a 2011, Luiz Dulci, é amigo do ex-presidente e dirigiu por alguns anos o Instituto Lula. Dulci esteve à frente dos projetos liderados pelo companheiro ao longo de quase toda sua trajetória política, e ao lado como amigo por mais de 40 anos. “O Lula é ingovernável. Ele muda tudo, improvisa.”
O amigo conta que, para os mais próximos, a maior dor é saber da solidão de Lula.“A política vai fazendo com que as pessoas deixem de gostar de gente. Mesmo pessoas boas. Nesse caso, são pessoas que gostam da humanidade de um modo geral. É abstrato. Ainda mais num país grande como o Brasil, você vai eliminando os excessos, porque se tem muito pouca privacidade. É necessário preservar os espaços. O Lula não tem isso. Ele gosta das pessoas individualmente, não do ideal de povo. Ele tem uma relação física com as pessoas.”
Nas caravanas que o ex-presidente empreendeu por todo o país em 2017 e 2018, incontáveis vezes ele se embrenhou no meio do povo que ia recebê-lo nos atos. Na caravana de Minas Gerais, os assessores contam que Lula, disse, reclamou de uma dor em dos dos braços, tantas foram as vezes que os populares o puxaram. “Ele não reclamou, e disse que no dia seguinte o jeito ia ser dar o outro braço e preservar o dolorido”, conta a assessora de imprensa Gabriela Gualberto.
A leitura, por exemplo, é para muitos uma atividade solitária, mas o ex-presidente faz disso um ato coletivo. Dulci conta que, em uma das primeiras viagens de Lula depois já ter deixado a Presidência, os dois aproveitavam o tempo no voo para ler.
No final da viagem o assessor sabia mais do livro que o ex-presidente estava lendo do que de seu próprio.“Era um livro do Mandela. Muito bom, por sinal. Mas ele me interrompia o tempo todo fazendo comentário das coisas que ele lia. Eu falei “pô, Lula”.
Anos mais tarde, quando os amigos foram juntos a última assembleia do Partido Comunista Italiano, o ex-presidente voltou ao assunto. “Ele me perguntou: ‘Dulci, você consegue ficar horas lendo um livro sozinho?’ Eu ri e disse que sim, que até gosto. Ele respondeu dizendo que não sabia fazer nada sozinho. Mas quando ele diz não sabe, não é que ele não sabe, é que ele não gosta.”
Luiz Dulci é também professor de português e literatura. Para ele, Lula é como o artista de circo dos poemas do francês Charles Baudelaire: “O espectador saboreia o esforço; sorve o suor”. “Ele faz e acontece porque o povo bebe o suor dele. E é verdade. Na campanha de 2002 eu tinha que pedir para pentear o cabelo de vez em quando, porque o suor despenteava tudo”, diz.
Por Carta Capital