“Um exemplo do Nordeste: Não ao negacionismo da Ciência”
A média de óbitos pela doença no País alcança 282 por 100 mil habitantes, mas todos estados nordestinos têm menos óbitos que a média nacional, afirma Sérgio Rezende, da coordenação do Consórcio Nordeste
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Nos primeiros dias de 2020 o mundo tomou conhecimento de uma informação preocupante vinda da cidade de Wuhan, na China. Uma doença até então desconhecida, transmitida por um novo coronavírus, em pouco tempo debilitava as pessoas e podia levar a óbito. A doença, que recebeu o nome de Covid-19, causou uma epidemia que fez o governo local decretar “lockdown” e construir um hospital de campanha para a internação dos doentes que se multiplicavam. E as atenções do mundo voltaram-se para a China.
Muitos acreditavam que a nova doença ficaria confinada à China, mas logo os primeiros casos da covid-19 foram anunciados na Itália e na Alemanha, em pessoas infectadas por viajantes que chegavam da China. Em algumas semanas a epidemia se espalhava na Itália, Alemanha, França, Espanha, Reino Unido, e chegava aos Estados Unidos. No início de março a Organização Mundial da Saúde reconhecia a situação de pandemia, quando 114 países anunciavam a infecção de mais de 118 mil pessoas.
Logo a ciência entrou em cena, identificando os efeitos da covid-19, como danos permanentes aos pulmões, por síndrome respiratória aguda, e ao coração, deixando sequelas graves e até levando a óbito. Também houve grande avanço nos métodos de testagem, mas nenhum medicamento específico para o tratamento da doença foi identificado, e nenhum tratamento precoce teve sua eficácia comprovada cientificamente. A ciência também demonstrou que o novo coronavírus, denominado sars-cov-2, era transmitido no contato entre as pessoas, ou por meio de gotículas expelidas por tosse, espirro, etc. Então, a única maneira de controlar a epidemia era o isolamento social, uso de máscaras, higienização sistemática, etc.
Ainda em março foram identificados os primeiros casos da covid-19 no Brasil, em turistas que chegavam da Europa. A reação imediata do presidente da república foi a negação da gravidade da doença, dizendo que em pessoas saudáveis ela causaria no máximo uma gripezinha, e aconselhando a população a continuar a vida normal. Foi então que os governadores dos nove estados do Nordeste, reunidos no Consórcio Nordeste (CNE), criaram o Comitê Científico de Combate ao Coronavírus (C4), formado por cientistas especializados nos vários temas relacionados à doença. Logo o C4 passou a emitir boletins com recomendações de ações para a contenção do espalhamento do novo coronavírus, informações para as equipes de saúde, análises de cenários e riscos, entre outros, com base no melhor conhecimento científico existente.
A primeira recomendação do Boletim 1 era enfática, os estados e municípios deveriam impor medidas restritivas de distanciamento social, que eram essenciais para conter o avanço da epidemia. Ela foi acatada pelos governos do Nordeste, porém a epidemia expandiu na região, facilitada por ser uma mais pobres do País, com enormes desigualdades sociais, com aglomeração de pessoas nas moradias e trabalhando em setores comerciais informais ou desestruturados.
Seis meses após o início da epidemia no Brasil os números diários de casos e óbitos pela covid-19 começavam a diminuir, indicando o final de uma “onda epidêmica” muito mais longa que nos países europeus, onde a queda se verificou dois a três meses após o início, em razão das medidas restritivas logo implantadas. Entretanto, as aglomerações causadas pelas eleições municipais e pelas festas de final de ano levaram ao início da segunda onda.
No final de 2020 o mundo tomou conhecimento de outra vitória da ciência, o desenvolvimento em tempo recorde de vacinas contra a covid-19. Graças aos avanços na biotecnologia, pesquisadores em universidades e centros de pesquisa, em articulação com empresas farmacêuticas, ainda no meio do ano já anunciavam o início de teste sem humanos de várias vacinas candidatas. Nesta época, empresas estrangeiras procuraram o governo brasileiro para oferecer suas futuras vacinas. O governo rejeitou todas elas, pois o presidente da República afirmava que não seriam necessárias.
Nos primeiros meses do ano a segunda onda da pandemia ganhou corpo no Brasil, e como em outros países foi mais intensa que a primeira. No início de abril a média móvel de sete dias de casos de covid-19 atingiu 100 mil, enquanto a média de óbitos atingiu 3,1 mil. Em dias de pico houve cerca de 4,5 óbitos.
Desde então os números têm caído lentamente, mas o número total de mortes pela covid-19 chega à terrível marca de 600 mil. Uma verdadeira tragédia! Resultado, em grande parte, da inépcia do governo federal, da permanente atitude negacionista do presidente da república e suas campanhas contra o isolamento social, contra o uso de máscaras de proteção, e até contra a vacina, influenciando diretamente parte da população, em especial seus seguidores mais fanáticos.
No balanço geral da crise da covid-19 no Brasil, a distribuição geográfica tem implicações significativas. No início da epidemia alguns estados do Nordeste apresentavam os piores desempenhos, e os prognósticos de especialistas para a região eram muito sombrios. Porém, após 18 meses, em 8 de outubro de 2021, quando o número de mortes no País chega a 600 mil, o número na Região Nordeste é 117 mil. Este número é absurdamente alto, mas corresponde a 19,5 % do total, enquanto o percentual da população nordestina é 27,5 %.
Em outra comparação, a média de óbitos pela doença no País alcança 282 por 100 mil habitantes, mas todos estados nordestinos têm menos óbitos que a média nacional. A menor taxa do País é a do Maranhão, com 143/100 mil, a segunda menor da Bahia, 181/100 mil, depois Alagoas, 186/100 mil, depois Pernambuco com 206/100 mil, etc.
Há duas razões para este cenário. Uma é que em todos estados do Nordeste, o presidente da República foi derrotado nas eleições de 2018. Portanto, no Nordeste ele tem menos seguidores para suas macabras recomendações. A outra, sem dúvida, é que os governadores e prefeitos da região rejeitaram o comportamento negacionista do presidente e seu governo e decidiram ouvir a ciência para tomar as decisões no enfrentamento da maior crise sanitária já vivida pelo Brasil.
Sergio M. Rezende, Professor Emérito da Universidade Federal de Pernambuco, foi ministro da Ciência e Tecnologia (2005-2010) no Governo Lula, é um dos coordenadores do Comitê Científico de Combate ao Coronavírus do Consórcio Nordeste, e Presidente de Honra da SBPC.