Violência política de gênero tem sido a marca do processo eleitoral brasileiro em 2020
Ameaças de morte, agressões físicas, prisão, assassinato, fake news, a régua do “vale tudo” na campanha pesou sobre a cabeça – e a vida – das mulheres. PT toma medidas para proteger candidatas de diversos partidos, inclusive quem está na disputa do 2 turno
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Ana Clara, Redação Elas Por Elas
As eleições 2020 no Brasil entram para a história como a disputa que marcou o aumento da violência política contra as mulheres. A onda da resistência feminista que encontrou potência na campanha “Ele Não”, em 2018, teve reflexo nas candidaturas de mulheres desse ano. Com foco no aumento da participação política feminina para enfrentar o fascismo e o bolsonarismo, as mulheres foram às ruas para disputar o processo eleitoral. A reação conservadora e antidemocrática não tardou em avançar sobre seus corpos, suas vozes, suas honras e suas vidas.
Neste momento, na linha de frente, encontram-se Manuela D’Ávila (PCdoB), em Porto Alegre-RS; Marília Arraes (PT), em Recife-PE; Marília Campos, em Contagem-MG; e Margarida Salomão, em Juiz de Fora-MG. Além da luta inexorável por uma sociedade mais justa, humana e igualitária, elas têm em comum o enfrentamento cotidiano contra a violência machista e misógina típicas da sociedade brasileira, mas que se acirra durante o processo eleitoral.
Manuela D’Ávila já foi vereadora, deputada federal por dois mandatos, deputada estadual, candidata à vice-presidência, já passou por oito disputas eleitorais e reafirma que sempre foi vítima de ataques misóginos e machistas. Em 2018, por conta do enfrentamento direto contra o atual presidente, ela sofreu ameaças de todo tipo, além da disseminação intensa de fake news contra ela e sua família; carros militarizados, fora de função, estacionavam em frente à sua casa para intimidar seus parentes e todo tipo mentira e desinformação foi e ainda tem sido plantado sobre a sua pessoa.
Marília Arraes, em Recife, também sofre com a violência de gênero na política. Além das ofensas e ameaças, lambe-lambe apócrifos e ofensivos contra a sua pessoa foram espalhados pela cidade, que demonstram claramente uma atitude desesperada do PSB a poucos dias da eleição em segundo turno. Infelizmente, essa atitude não foi uma novidade. Em 2014, essa prática foi adotada pelo PSB quando ela decidiu sair do partido. “A mulher não ocupa os espaços se não botar o pé na porta. Se for entrar pedindo licença, não entra em canto nenhum”, afirmou Marília aos pesquisadores do artigo “ Trajetória política de Marília Arraes na esquerda em Pernambuco: algumas questões de Gênero”, das universidades federais de Pernambuco e Sergipe.
“Eu fui a quarta deputada federal que se elegeu na história de Pernambuco, somente quatro mulheres foram eleitas deputadas federais aqui no nosso estado, na história inteira de Pernambuco. Aqui na Câmara do Recife, na história toda da cidade, somente 13 mulheres foram vereadoras. Então, Pernambuco é um estado bem machista na política. E no cotidiano parece que a situação está piorando, com essa saída do armário de muita gente, de muito machista, de muito preconceituoso que teve a oportunidade de colocar para fora o que queria dizer há muito tempo. […]Eu acho que o fato de a gente ter ousado se colocar como candidata, de ter crescido como cresceu já foi um avanço, espero que a gente consiga com isso abrir outras portas pra gente e para outras mulheres”, afirmou Marília.
No Rio de Janeiro, a violência se repete. A deputada federal Benedita da Silva, candidata a prefeita pelo PT, sofreu ataques racistas e preconceituosos nas redes sociais. Um dos posts que mais geraram revolta foi publicado pela deputada federal Carla Zambelli, do PSL, em sua página no Instagram. Noutro, a candidata registrou queixa na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância – Decradi, quando foi chamada de “preta ridícula, beiçuda, nariz de tomada” e “negra idiota”. “Nas redes sociais há um aumento substancial de crimes de ódio como racismo e injúria racial. A deputada Benedita foi mais uma vítima dessa onda”, afirmou seu advogado, Rodrigo Mondengo, em entrevista à Carta Capital.
Na Bahia, Major Denice (PT-BA), candidata a prefeita de Salvador, enfrentou a violência política na campanha pela ocupação do Palácio Thomé de Sousa (sede da prefeitura soteropolitana). Nesse caso, além de lidar com xingamentos e atos racistas nas redes, ela ainda teve que combater a campanha de desinformação e fake news.
Outro caso foi o da educadora e fundadora da Rede de Mulheres Negras da Bahia, Lindinalva de Paula (PT-BA). Ela sofreu um ataque de hackers no lançamento online da pré-candidatura, um mês antes do início da propaganda eleitoral. A atividade realizada na plataforma Google Meet foi invadida por dois perfis que interromperam a transmissão com imagens pornográficas, termos ofensivos e saudações ao atual presidente, Jair Bolsonaro.
A comprovada violência de gênero contra as mulheres também atingiu a candidata da Rede Sustentabilidade à Prefeitura de São Paulo, Marina Helou, que, após o debate entre os candidatos, realizado pela Band, em 1º de outubro, recebeu mensagens nas redes que faziam comentários sobre seu corpo, perguntavam se ela era casada, entre outras questões jocosas.
Em Goiânia, a deputada estadual Delegada Adriana Accorsi (PT) e sua família foram ameaçadas por um perfil falso na rede social Instagram. Uma conta identificada como Hugo Rossi enviou mensagens de cunho ameaçador para a parlamentar, que concorreu à Prefeitura de Goiânia nestas eleições, chegando perguntar se ela já havia “comprado caixão” para suas filhas.
Não é só nas capitais
Não importa o tamanho da cidade, a violência política que cria obstáculo à participação das mulheres não tem fronteiras. De Curralinho (PA) a Joinville (RS), passando por Cachoeiro (ES)
Leila Arruda, candidata a prefeita em Curralinho (PT-PA), foi brutalmente assassinada a facadas pelo ex-marido, de quem estava separada há mais de três anos. Com uma campanha que demarcou a luta das mulheres, em defesa da educação pública de qualidade, Leila teve sua vida ceifada por um homem que se julgou no direito de tirar a vida dela. Em Cachoeiro (ES), a candidata a vereadora Elisângela Altoé foi agredida a socos por um homem, durante uma panfletagem em um bairro. Ele deu diversos socos, levou-a até o chão e ela foi levada semi consciente para a Santa Casa de Misericórdia da cidade. A polícia foi chamada, mas o suspeito não foi encontrado. Em Joinville (SC), Ana Lucia Martins (PT) primeira mulher negra eleita na cidade, teve que procurar segurança abrindo um boletim de ocorrência contra ameaças que vem recebendo em suas redes sociais desde o anúncio de vitória nas eleições. As mensagens recebidas diziam: “Agora só falta a gente m4t4r el4 [sic] e entrar o suplente que é branco”.
E ainda outra situação inusitada e absurda. Leda Mota, candidata a vereadora pelo PCdoB em Resende (RJ) foi vítima de agressão por parte de seu companheiro. Ao denunciar o caso na delegacia, sofreu nova violência ao ser presa por desacato, sob a absurda justificativa de que estaria “causando tumulto com fins eleitorais”.
Após a eleição da vereadora do PT, Thays Bieberbach, em União da Vitória (PT), ela recebeu comentários que, nitidamente, desmerecem a própria condição de mulher. Os impropérios misóginos se misturam entre os seguintes: “anta”, “acéfala”, “merda”, “idiota”, “lixo”, “verme”, “otária”, “doente mental”.
O alvo tem cor
A pesquisa Violência Política Contra Mulheres Negras revelou que a maioria das mulheres negras que se candidatou a cargos eletivos em 2020 sofreu algum tipo de violência no ambiente virtual. No total, 78% das candidatas negras de todas as regiões do país, que responderam à pesquisa, relataram ter sofrido desde xingamentos racistas em suas páginas até ataques sincronizados em transmissões ao vivo.
Os dados são do estudo realizado pelo Instituto Marielle Franco, com apoio da Terra de Direitos e Justiça Global, e divulgado em novembro. Os principais autores das violências são grupos não identificados (45%), candidatos ou grupos militantes de partidos políticos adversários (30%) e grupos anti-feministas, racistas e neonazistas (15%).
“Não vamos avançar na participação política das mulheres enquanto esse cenário for realidade. Por isso, exigimos providências das autoridades no sentido de criar um ambiente democrático para que a disputa eleitoral se dê sobre bases igualitárias e mais justas”, afirma Anne Moura, secretária nacional de mulheres do PT.
No dia 20 de novembro, o Partido dos Trabalhadores acionou o TSE e a Procuradoria Geral Eleitoral exigindo providências em relação à proteção das mulheres candidatas e eleitas e pela responsabilização e penalização dos agressores e disseminadores de inverdades.
A medida visa reduzir a desumana violência psíquica e física que as candidatas têm sofrido durante o processo eleitoral e escapar à reprodução de concepções convencionais do ‘feminino’, que vinculam as mulheres à esfera privada e/ou dão sentido a sua atuação na esfera pública a partir do seu papel convencional na vida doméstica.