Líder dos professores e deputada do PT em SP: “Volta às aulas é genocídio”
Confira entrevista da UOL com a deputada estadual professora Bebel, de São Paulo
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Entrevista de Luiza Souto para a UOL
Em meio ao impasse quanto à data do retorno presencial às aulas em São Paulo, a presidente da Apeoesp (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo), Maria Izabel Azevedo Noronha, conhecida como Professora Bebel, decretou: “Não mandarei minha filha de 11 anos para a escola”. A previsão inicial para a volta às aulas dada pelo governo do estado é o dia 8 de setembro, mas o governador João Doria (PSDB) deve bater o martelo sobre a data até esta sexta (7). Para Bebel, que também é deputada estadual pelo PT, manter os estudantes em casa é uma questão de escolha pela vida.
“Voltar com a curva em alta é um genocídio”, ela afirma. Segundo dados divulgados por Doria na quarta-feira (5), São Paulo registrou 407 novas mortes por coronavírus em 24 horas. Este é o terceiro maior valor de mortes registrado em um dia no estado desde o início da pandemia. No total, já são 24.109 óbitos. Houve uma queda na média móvel de mortes, em relação às duas semanas anteriores, mas o estágio do estado na pandemia ainda é considerado acelerado.
Segundo Bebel, as escolas não estão preparadas para receber as crianças num contexto de pandemia. “Não basta ter álcool em gel ou máscara. Não há nenhum calendário de reforma, de adequação desses espaços. São mais de mil salas de aula sem condições de funcionamento.” Para ela, seguir com as aulas virtuais não é o fim do mundo: “Fim do mundo é perder aluno, professor, trabalhador da escola”.
Professora de português e literatura do ensino médio da rede pública estadual por 15 anos, Bebel, 60, conta que escolheu a profissão ao descobrir o gosto por dar aula aos irmãos desde menina, com carvão e tábua. Nascida em Piracicaba (a 155 quilômetros da capital), ex-doméstica e com a mãe analfabeta, foi a primeira a se formar numa faculdade, na família de quatro irmãos.
Hoje, precisa ensinar diariamente a Maria Manoela, sua filha adotiva, uma menina negra, a enfrentar o racismo entre os colegas de classe.
“Uma vez, ela chegou da escola e contou que um menino falou que ela não era a minha filha. Eu questionei e ela respondeu: ‘Ele falou que não sou sua filha porque você é branca e eu sou negrinha'”, descreve Bebel.
Leia os principais trechos da entrevista.
O estado de São Paulo está preparado para voltar às aulas em setembro?
Não, porque aula aglomera. Você tem que mobilizar muito mais os alunos, funcionários, pais. Há uma pesquisa internacional dizendo que as crianças pegam facilmente o vírus e são portadoras imediatas [um novo estudo, publicado nesta quinta-feira (30) no periódico JAMA Pediatrics, indica que, quando doentes, as crianças têm uma carga viral considerável que, a ser confirmado por novos estudos, pode significar uma capacidade relevante de transmitir a covid-19]. A própria fundação Fiocruz diz que não tem como voltar às aulas agora. Não basta ter álcool em gel ou máscara. A estrutura da escola não está preparada para receber as crianças. Não há nenhum calendário de reforma, de adequação desses espaços. São mais de mil salas de aula sem condições de funcionamento.
O que está em questão para nós é a defesa da vida
Algumas cidades estão deixando os pais escolherem se as aulas voltam. É correto deixar para eles essa responsabilidade?
Não, porque quem tem que nortear são os órgãos sanitários, os epidemiologistas. E a grande maioria deles é contrária à volta às aulas. Uma saída viável é deixarem voltar os últimos anos do ensino médio, os alunos que vão prestar Enem e a educação de jovens e adultos. Aí, de certa maneira, não tem mais de três milhões de alunos. Depois se faz um mutirão para recuperar o conteúdo das crianças. Mas voltar com a curva em alta é um genocídio.
O que dizer para as mães que precisam mandar os filhos para a escola para voltarem a trabalhar?
Então seu filho vale o quê? O seu salário? As empresas que querem a volta dessa mãe que deem auxílio para as famílias cuidarem das crianças. Na minha família, eu tinha um irmão menor e a gente deixava na vizinha. É preciso ter uma rede de solidariedade. Há saída. Menos para a morte. Vamos buscar a solidariedade. Minha filha tem 11 anos, fica com a minha mãe, de 76, e por isso não a mandarei para a escola em setembro. Ela está tendo o que eu chamo de teletrabalho. Porque não considero aula online, por ser algo limitado, diferente de uma sala de aula. E não vejo nenhum clima de angústia e tristeza nela. Não acho que seja o fim do mundo. Fim do mundo é perder aluno, professor, trabalhador da escola. E os professores podem se recusar a voltar. Se o governo se recusar a pagar [o salário do professor que não for dar aula], podemos judicialmente alegar que fizemos opção pela vida.
Universa fez um levantamento recente mostrando que a polícia registra pelo menos um caso de estupro por dia em escolas. Como conseguimos acabar com essa e outras formas de violência nesses locais?
Criando-se laços entre alunos e professores, e isso acontece colocando menos alunos em sala de aula e permitindo uma jornada para o profissional dentro de uma única escola. Hoje, as escolas parecem cadeias. É um monte de grade. Esse não pode ser um espaço coercitivo, mas persuasivo. A segurança se dá quando as escolas se reúnem com os pais e a comunidade, dando a eles a responsabilidade também de cuidar. É aí que o responsável vai observar de perto o que o filho está fazendo, porque tudo cai para o professor. É importante lembrar que a violência na escola começa em 1995 [naquele ano, o Governo Covas propôs uma reorganização escolar, cortando recursos para a educação e diminuindo o quadro de profissionais na rede], porque até aquele período tínhamos uma pessoa que recebia o aluno na porta da escola, da comunidade, e que sabia o nome de todos. Mas naquele ano houve redução drástica no número de funcionários na escola, e não tem quem dê conta. Pode colocar câmera, mas quem vai ficar olhando as imagens para antever uma ação?
Existe um projeto de lei que visa restringir às profissionais mulheres a exclusividade nos cuidados íntimos de crianças na educação infantil, como trocar fralda, dar banho e ajudar a ir ao banheiro. A ideia é evitar o abuso. Concorda que essa medida seja eficaz?
Não, mas isso é um tabu da sociedade. A mãe não aceita que o homem pegue na menina. Mas aí não precisa virar projeto de lei. Na minha casa, a minha irmã não aceita. É uma questão cultural, tem que ir vencendo. Não sei se [afastar profissional homem] resolve. Isso tem que ser visto na hora que contrata. Olhar o perfil dessas pessoas.
Como conversar com a mãe que não concorda que os filhos recebam educação sexual nas escolas?
É preciso dizer que tem que falar de sexo, até porque essa criança convive com isso, já que as escolas não têm divisão. É tudo junto, meninos e meninas. Tem que preparar a jovem, inclusive porque existe a gravidez juvenil. É uma defesa para os pais também. Se para a família é mais difícil tocar no assunto, os professores vão falar, de forma mais científica. Eu tive que explicar para a minha filha, Manoela, quando ela tinha seis anos, sobre isso, porque ela é adotada. E expliquei como ela saiu da barriga da mãe dela, que inclusive mora comigo. A mãe dela foi adotada pela minha mãe também. Foi uma assistente social que, no momento em que a adotei, pediu para que eu desse esse esclarecimento.
Como se deu essa adoção?
A mãe [biológica] da Manoela tem alguns problemas de saúde, teve traumatismo craniano, e minha mãe a adotou. Ela hoje tem 32 anos. Quando a Leo engravidou, soube por vizinhos que ela queria fazer besteira, então eu disse que ficaria com o bebê. Ela ainda perguntou: “Mas mesmo que ele seja pretinho?”, porque ela é negra. E eu falei que sim. E a convivência entre nós é superlegal. Manu é privilegiada porque tem três mães: eu, a Leo e minha mãe.
A Manu já sofreu racismo?
Sim. Uma vez, ela chegou da escola e contou que um menino falou que ela não era a minha filha. Eu questionei sob que autoridade ele disse aquilo. E ela respondeu: “Ele falou que não sou sua filha porque você é branca e eu sou negrinha”. Fui conversar com a coordenadora, que conversou com a turma e com a família do menino. E disse a ela que tem várias formas de ser mãe. Mas, às vezes, ela vem com um caso de racismo.
Como você fala sobre racismo com ela?
Fico de olho em tudo. Às vezes, ela está triste e pergunto o porquê. E conversamos. Comprei umas roupas onde se lê “eu amo meu cabelo” para ela se aceitar. Poxa, ela é a cara da Taís Araújo, e mostro para ela como a atriz é linda. E falo: “Veja se ela alisa o cabelo”. Mas a Manu diz que o cabelo liso é bonito. Eu falo que não é, que ela é linda do jeito que é e, aos poucos, ela está se aceitando.
A senhora é sindicalista, mulher e está num cenário ainda muito masculino, como deputada. Ainda sofre muito machismo?
Muito. A cada minuto da minha vida. Nunca vi uma coisa tão difícil quanto ser mulher empoderada. Eu sou líder das minorias na Assembleia, mas esquecem disso [Bebel é líder do bloco PT, PSOL e PCdoB, partidos que compõem a Minoria na Assembleia Legislativa do Estado de SP]. É de um machismo e misoginia que chegam a exalar. Durante debates sobre a reforma da previdência, eu ia pedir questão de ordem e se faziam de surdos. E aí você tem que se impor, subir na tribuna e falar muito. De qualquer forma, já avisei que meu lombinho está bem grosso e podem fazer o que quiserem que aguento todas.
Se sentir assédio, vou fazer denúncia. Tem que viver na ameaça