Artigo: A reinvenção do BRICS, por Marcio Pochmann
A incapacidade de oferecer melhores perspectivas de futuro pelos gigantes corporativos do Norte Global confere nova função a ser construída pelo BRICS, aponta Pochmann
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O contexto que permitiu construir o BRICS no passado está superado. Há 13 anos, ainda havia dúvidas a respeito do esgotamento da governança unilateral do mundo conduzida pelos Estados Unidos desde o fim da Guerra Fria.
Tal como em 1945, quando a derrota ao nazifascismo foi celebrada pela visão de grandes expectativas, o término da Guerra Fria, em 1991, também foi saudado como o Fim da História e o renascimento do projeto de modernidade Ocidental. O esperado era a repetição de um novo ciclo de 30 anos gloriosos de expansão capitalista sem limites de prosperidade.
Após 18 anos de globalização irrestrita, a desregulação produtiva e financeira e a flexibilização do trabalho fragilizaram demasiadamente o sistema interestatal posto em marcha desde o final da Segunda Guerra Mundial. Antes disso, o colonialismo dominado pelo imperialismo inglês fomentou a primeira globalização entre 1870 e 1914, cujos termos de trocas eram profundamente desfavoráveis às regiões periféricas.
Desde a virada para o século 21, o curso da segunda globalização concedeu centralidade ao poder privado da grande corporação transnacional, enfraquecendo a governança das Nações Unidas fortemente influenciada pela dominância ocidental. Diante disso, o BRICS emergiu como reação à ausência de transbordamento do enriquecimento que cada vez mais se concentrava nos gigantes corporativos do Norte Global.
Nos últimos 13 anos do BRICS, três novos elementos estruturais passaram a fundamentar o contexto mundial, distante do verificado no final da década de 2000. Sobre isso, aliás, cabe ao BRICS se posicionar, considerando a urgente e necessária conformação das bases de um novo sistema internacional.
O primeiro elemento estrutural resulta do inédito movimento de deslocamento do centro dinâmico mundial do Ocidente para Oriente. Após cinco séculos de dominância do projeto de modernidade ocidental, iniciado com a queda de Constantinopla em 1453, e o salto das grandes navegações, os Estados Nacionais no Ocidente se encontram atualmente diante de intensa polarização e desintegração interna.
Por excessos de neoliberalismo, o projeto de modernidade ocidental está exposto à grande regressão histórica, com o colapso da velha ordem mundial. A Inglaterra se separou da União Europeia que se desintegra diante de conflitos e guerras, enquanto os Estados Unidos buscam enfrentar a polarização interna com crescente protecionismo.
A incapacidade de oferecer melhores perspectivas de futuro pelos gigantes corporativos do Norte Global confere nova função a ser construída pelo BRICS.
O paradigma do desenvolvimento multipolar em sinergia compartilhada pela Iniciativa Cinturão e Rota nos dias de hoje permite reposicionar o mundo em situação superior ao papel do Plano Marshall de reconstrução da nova ordem mundial do segundo pós-guerra mundial. Recria mobilidade econômica, política, cultural e social de civilizações esquecidas. Com enorme conjunto de investimentos, a infraestrutura de transportes interconecta e moderniza tudo o que se integra à Ásia. Pode indicar um certo adeus ao efêmero momento unipolar desde o fim da Guerra Fria dominado pelos Estados Unidos.
O segundo elemento estrutural decorre do avanço para o antropoceno. O novo regime climático que se consolida tem sido gerado pelo impacto acelerado da acumulação de gases de efeito estufa sobre o clima e a biodiversidade.
Os danos climáticos parecem irreversíveis, pois ocasionados pelo modelo de produção e consumo excessivo de recursos naturais. Parecem indicar, assim, a ultrapassagem do ponto de não retorno, com a elevação média da temperatura e suas consequências desfavoráveis para a humanidade.
Cabe reconhecer, diante disso, que a estratégia do Desenvolvimento Sustentável perseguida desde os anos 1980 não se mostrou suficiente para superar a fé ingênua no progresso, especialmente em sua ideologia consumista, propagada pelos poderosos lobbies econômicos. A grande aceleração na mudança climática expressa pela perda de cobertura vegetal, da biodiversidade e das extinções generalizadas decorre do caráter não generalizável e insustentável do sistema econômico ocidental.
O terceiro elemento, por fim, se fundamenta na passagem para a Era Digital. A marcha da revolução informacional produz intensas e substanciais transformações nas sociedades, que rompem com a trajetória pregressa, emergindo em substituição à Era Industrial.
Se se considerar que a Era Industrial substituiu a antiga Era Agrária, percebe-se o avanço do terceiro ciclo de renovações de ideias, ações e pensamentos que marcaram a história da humanidade. Por isso, não se trata de mais uma dentre as várias evoluções que as transformações sobre as técnicas produziram.
Cabe considerar as novas formas de produção e transformação do espaço geográfico, das paisagens, dos lugares e do território. Tudo isso sob a marca da interligação e compartilhamento de informações, impressões e difusão de novas formas de cultura e saberes.
O inédito processo de interdependência resulta da nova condição de que as pessoas passaram a contribuir e produzir novas ideias e ações, para além de meras receptoras de dados e informações. Nesse sentido, as instituições constituídas a partir da Era Industrial se encontram em menor credibilidade e buscam sua própria reconfiguração diante do novo cenário político, econômico, social e cultural.
A reinvenção radical de pensar e propor o novo papel para o BRICS está lançada. O momento é o de construção de grandes expectativas a partir dos três elementos estruturais que conformam o atual contexto mundial, diferente daquele que permitiu fundar as bases originais do BRICS.
Marcio Pochmann é presidente do Instituto Lula
Publicado no Terapia Política