Artigo: “Desigualdades 4.0”, por Marcio Pochmann

Embora o Brasil esteja distante das nações que mais avançam na economia e sociedade digitais, os efeitos de sua difusão no interior da sociedade e da economia nacional são inegáveis

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Marcio Pochmann

Uma nova geração de desigualdades contamina o mundo atualmente. O avanço da Era Digital vem sendo acompanhado por mecanismos produtores e reprodutores de iniquidades até então desconhecidas.

O Brasil tem sido identificado internacionalmente por se encontrar entre os países de mais elevada desigualdade em suas diversas dimensões. Na medida da concentração de terras, por exemplo, ocupa o segundo lugar no ranking mundial, sendo internamente o estado de Mato Grosso do Sul o campeão nacional na desigualdade agrária.

Em verdade, o Brasil não se mostrou capaz de enfrentar suficientemente a desigualdade instalada desde a época em que passou a fazer parte do sistema colonial, há mais de 500 anos. Quando a formação da nação se materializou, com a independência nacional (1822), o Brasil era ainda um somatório de portos conectados pela função de entreposto comercial voltada à desova da produção extrativista para o exterior (Pará, Salvador, Recife, Maranhão, Rio de Janeiro e São Paulo).

Tanto assim que até completar o seu primeiro centenário da Independência nacional, em 1922, o Brasil ainda era visto como um enorme arquipélago de ilhas constituídas por enclaves econômicos no território ocupado por populações que viviam praticamente isoladas. Foi somente com a Revolução de 1930 que a integração do território nacional passou a acontecer para valer.

A constituição do mercado nacional de trabalho foi tarefa fundamental promovida na passagem do modelo econômico primário-exportador para o de substituição de importações por ampla e crescente produção interna, especialmente de bens e serviços industriais. Desta forma, o mercado interno se materializou fortalecido pelo avanço das relações de trabalho assalariadas.

Mas isso, contudo, transcorreu diante da ausência de reformas clássicas do capitalismo contemporâneo. Ou seja, sem a democratização do acesso à propriedade fundiária e com a prevalência da exclusão dos ricos do sistema tributário e da postergação na criação do Estado de bem-estar social.

Assim, o processo de modernização capitalista gerado a partir da Revolução de 1930 se mostrou extremamente conservador. A reprodução das desigualdades provenientes do longo período colonial não apenas deixou de ser enfrentada, como foi ainda mais reforçada pelas próprias desigualdades intrínsecas à conformação da nova sociedade urbana e industrial.

No antigo sistema colonial, as áreas de maior dinamismo econômico estavam vinculadas ao ciclo primário-exportador, como o açúcar no porto de Recife, o ouro e o café no Rio de Janeiro e Santos e a gestão colonial no porto de Salvador (capital entre 1549 e 1763). Durante a industrialização e urbanização nacional, entre as décadas de 1930 e 1970, a região Sudeste, sobretudo o estado de São Paulo, concentrou a maior parte da produção de bens e serviços industriais, sendo o eixo mais dinâmico da economia nacional.

Assim, a desigualdade territorial não parou de crescer. Enquanto São Paulo era o centro do modelo econômico de substituição de importações por produtos nacionais, os demais estados eram, em geral, fundamentalmente os seus fiéis compradores internos.

Por isso, quanto mais o Brasil crescia, mais o estado de São Paulo se expandia. Ao Rio de Janeiro, centro administrativo nacional, coube a função de ser, até 1960, o articulador político e administrativo do conjunto dos estados da federação, enquanto São Paulo integrava econômica e subordinadamente a totalidade da nação.

Em síntese, a concentração territorial da estrutura produtiva, ocupacional e de renda foi inequivocamente crescente, pelo menos até os anos 1970, na região Sudeste, sobretudo no estado paulista.

Desde a virada para o século 21, entretanto, a desindustrialização nacional coincidiu com o início da transição para a nova Era Digital. As regiões Sul e Sudeste foram as mais afetadas territorialmente pela troca do modelo econômico de substituição de importações pelo retorno ao primário-exportador. Mesmo assim, o avanço da digitalização na economia e sociedade brasileiras tem privilegiado essas mesmas duas regiões, acrescentando, também, a região Centro-Oeste. Mais uma vez, as regiões Nordeste e Norte estão ficando para trás.

Isso é o que revela o Índice Brasileiro de Economia e Sociedade Digitais (IBESD), recentemente apresentado pelo Instituto Lula (App iLula). Seu objetivo é o de medir a capacidade e a aptidão do país a adotar e desenvolver as tecnologias digitais voltadas para a melhor transformação econômica, social, política e cultural.

Embora o Brasil esteja distante das nações que mais avançam na economia e sociedade digitais, os efeitos de sua difusão no interior da sociedade e da economia nacional são inegáveis. A pandemia da Covid-19, a partir de 2020, só fez acelerar ainda mais essa difusão, aprofundando as desigualdades já conhecidas e acrescentando as novas, que se generalizaram paralelamente à escassa intervenção do poder público.

Diante disso, o indicador nacional da economia e sociedade digitais (IBESD), constituído por quatro dimensões, 12 subdimensões e 48 indicadores, representa uma importante contribuição técnica a revelar a situação de atraso e a reprodução das desigualdades 4.0 no território nacional. Essa nova e necessária descrição da realidade brasileira precisa urgentemente vir acompanhada por inovadora geração de políticas públicas capazes de enfrentar o que já se encontra em curso e com efeito devastador sobre a economia e a sociedade.

Marcio Pochmann é economista, professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais da UNICAMP, ex-presidente do IPEA, autor de vários livros e artigos publicados sobre economia social, trabalho e emprego.

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