A esquerda avança na América Latina. O que isso nos ensina?, por José Dirceu
“Somos alternativa de governo em toda a América Latina e, mesmo onde fomos derrotados, continuamos na luta e na resistência”
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Acontecimentos políticos e eleições presidenciais na América Latina nos últimos meses nos trazem lições e alertas tanto para a disputa eleitoral que vamos enfrentar como para governar.
No 1º caso, somos alternativa de governo em toda a América Latina. Os exemplos estão aí, desde a derrota popular do golpe na Bolívia e a esmagadora vitória política e eleitoral de Evo Morales e do MAS, elegendo Luis Arce à vitória em Honduras de Xiomara Castro após 12 anos do golpe que destituiu o presidente Manuel Zelaya, passando pela derrota na Argentina do neoliberal Mauricio Macri pelos peronistas liderados pelo agora presidente Alberto Fernández e a ex-presidente Cristina Kirchner, a inesperada e bem-vinda vitória do professor Pedro Castillo no Peru, a rebelião da juventude e popular no Chile que levou à convocação da Constituinte e, agora, provavelmente, à vitória do deputado e ex-líder das rebeliões estudantis Gabriel Boric sobre o candidato da extrema direita Antonio Kast, chamado de Bolsonaro chileno.
Na Colômbia, as chances de uma vitória histórica da centro- esquerda liderada pelo senador Gustavo Petro, ex-prefeito de Bogotá e duas vezes já candidato a presidente, são reais. E mesmo no Uruguai e no Equador, onde fomos derrotados em eleições presidenciais, os ventos começam a mudar.
A Frente Ampla uruguaia, que obteve 49,21% no 2º turno com Daniel Martínez, ex-prefeito de Montevidéu, depois foi vitoriosa nas eleições municipais e, no Equador, o candidato de esquerda Andrés Arauz obteve 47,64% dos votos no segundo turno.
Por fim, tivemos no México do presidente Andres Manuel Lopez Obrador eleições legislativas e para governos regionais em 2021 abrindo chances reais de ele fazer seu sucessor nas eleições de 2026.
A 1ª lição é que somos alternativa de governo em toda a América Latina e, mesmo onde fomos derrotados, continuamos na luta e na resistência. Voltamos ao poder na Bolívia e em Honduras, a luta continua no Uruguai e Equador e, principalmente, no Brasil, onde de novo disputamos com chances reais de vitória, o que mudaria toda a correlação de forças na América do Sul. E mais uma vitória na Colômbia, somada à consolidação da liderança no México, criaria uma nova realidade política estratégica na América Latina.
A 2ª lição é que não só somos capazes de vencer eleições, mas também de derrotar golpes de Estado, ainda que a custos elevados e com consequências desastrosas pelas heranças malditas que os governos de direita nos entregam, que depois são limitadoras de nossas ações e políticas de governo e servem de pretexto para a oposição das forças derrotadas.
Um exemplo gritante é Honduras, onde depois de 12 anos a direita neoliberal e pró estadunidense deixa o país centro-americano na miséria com 36% de seu povo, segundo o Banco Mundial, na indigência, o país dominado por gangues de narcotraficantes, além da tragédia da imigração em massa de sua população. Só este ano 309 mil hondurenhos foram detidos na fronteira dos Estados Unidos.
Direita segue forte
A 3ª lição é que, apesar de derrotada, a direita continua forte – seja no Parlamento, seja na mídia– e tem condições de desestabilizar os governos populares, como vemos no Peru, a partir do poder real econômico e financeiro, cada vez mais usado como instrumento político para impor sua agenda derrotada nas urnas ou para inviabilizar o avanço de reformas estruturais indispensáveis para cumprirmos nosso programa aprovado nas urnas. Manipula-se assim a consciência e a vontade política popular, buscando reconquistar ou mesmo destituir nossos governos.
Isso que nos impõe a tarefa de encontrar caminhos para superar as limitações de nossos governos pela correlação de forças no Parlamento e na sociedade. Temos que nos apoiar não apenas nas alianças, mas, principalmente, na mobilização popular e enfrentar os desafios do crescimento econômico sem o que nada mudará.
Sabemos, pela nossa própria experiência no Brasil, que o desafio do crescimento econômico com distribuição de renda exige reformas estruturais urgentes as quais se opõem ao modelo neoliberal dominante e ao capital financeiro e rentista que sustentam este modelo. Elas não serão feitas sem confronto.
A 4ª lição é que não basta, ainda que isso seja indispensável, formar alianças políticas de centro-esquerda. A realidade aos poucos vai impondo a ampliação dessas alianças pela adesão de setores médios da sociedade e mesmo a da direita.
Não devemos deixar de ampliar nosso arco de alianças, mas temos que manter a mobilização popular, elevar o nível de organização e consciência políticas dos partidos políticos e de dirigentes enraizados nas classes trabalhadoras, com programas à altura dos novos desafios do século 21. Se não nos prepararmos com um programa que dê respostas às grandes demandas da sociedade –distribuição de renda, emprego, atividades criativas para os jovens, educação, saúde, nova política de segurança pública com o fim da violência, cultura, respeito à natureza– podemos até vencer as eleições, mas corremos o risco de fracassar pela incapacidade de formar maiorias para fazer as mudanças necessárias.
Mudança nos partidos
A presença da extrema direita na luta política e social exige de nós uma urgente mudança em nossos partidos e na ação política frente ao negacionismo, ao obscurantismo, ao fundamentalismo religioso e ao autoritarismo. A extrema direita trava uma luta mortal para ganhar corações e mentes de nossa juventude e do povo trabalhador, para submetê-los à passividade, à aceitação da pobreza e da miséria, ao seu lugar de explorados.
Do nosso lado emerge uma juventude combativa consciente de que quem faz seus direitos é ela própria na luta, são mulheres jovens, negros jovens, negras jovens, que não lutam só por emprego e educação, lutam por igualdade racial, respeito à diversidade de gênero, de raça. Uma juventude que quer seu lugar nas universidade, que quer apoio aos centro de pesquisa, que quer empregos qualificados para voltar a fazer do Brasil um país autônomo, capaz de produzir ciência e tecnologia para atender as demandas da sociedade para alimentar o povo, proteger os rios e as florestas, construir casas sustentáveis, carros que não poluem e até vacas com alimentação que produza menos gás estufa.
O mundo está mudando e o Brasil é chamado a ocupar seu lugar nesse novo tempo onde o poder mundial muda de mãos. A disputa pela hegemonia econômica e tecnológica se acirra e não vai deixar opções para os que não tem projeto de desenvolvimento nacional e não exercem sua soberania e independência para se apoderar da fantástica revolução tecnológica que já é realidade.
Uma potência como o Brasil e um povo como o nosso exigem que as esquerdas estejam à altura dos desafios que estão colocados. Esta é a consciência que devemos ter de nosso papel e convocar a juventude para concluir nossa inacabada revolução nacional, mesmo que no momento nossa principal tarefa seja derrotar a ameaça bolsonarista de extrema direita. Não devemos perder o norte de nossa missão de vida, de nosso fio da história, da herança que herdamos daqueles que lutaram e dedicaram suas vidas para construir o Brasil onde nosso povo e sua classe trabalhadora ocupam seu lugar não apenas de criadores de riqueza mas de cidadãos e cidadãs que decidem como produzir a riqueza e como distribuí-la com justiça e bem estar social, em paz e segurança, para uma vida feliz.
Por José Dirceu
Artigo publicado originalmente no site Poder 360