Acordo militar “inédito” entre Brasil e EUA levanta suspeitas
Estadunidenses estariam pressionando o Ministério de Defesa brasileiro a passar por cima do Congresso
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Foi anunciado, com pompa e circunstância, que o Brasil celebrará um “acordo inédito” na área militar com os EUA, um triunfo da diplomacia subalterna do governo Bolsonaro.
Tal acordo, denominado Acordo para a Pesquisa, Desenvolvimento, Teste e Avaliação de Projetos em Matéria de Defesa (RDT&E, no acrônimo inglês) seria firmado na próxima viagem de Bolsonaro aos EUA (Miami), que se inicia em 7 de março, e possibilitaria o acesso do Brasil ao bilionário fundo norte-americano para o desenvolvimento tecnológico da defesa (cerca de US$ 100 bilhões anuais) e o desenvolvimento de “produtos binacionais” em armamentos. Nessa viagem, frise-se, Bolsonaro visitará instalações militares do Comando Sul.
Ora, em primeiro lugar, tal acordo não tem nada de “inédito”. Segundo as informações do Office of the Under Secretary of Defense for Acquisition and Sustainment, os EUA mantêm parcerias tecnológicas –militares semelhantes com os seguintes países: Canadá, Reino Unido, França, Alemanha, Itália, Espanha, Dinamarca, Países Baixos, Noruega, Suécia, Finlândia, África do Sul, Israel, Coreia do Sul, Taiwan, Japão, Filipinas, Malásia, Cingapura, Indonésia, Índia e Chile.
Em segundo lugar, o acordo que será firmado é mera consequência de um outro acordo, celebrado em 22 março de 2017, no governo Temer. Trata-se do Acordo Mestre de Troca de Informações (MIEA, na sigla em inglês). Trata-se de um acordo “guarda-chuva”, que permite e prevê trocas de informações sobre tecnologia da defesa, com vistas ao desenvolvimento de “produtos binacionais”.
Acontece que, para ser operante, o MIEA precisa do RDT&E, pois é nesse último acordo específico que são definidos áreas e projetos de interesse. Dessa forma, as negociações para a assinatura do RDT&E começaram lá em 2017, logo após a assinatura do MEIA.
As assinaturas do MIEA e do seu “filho”, o RDT&E, vem na esteira de uma séria de decisões estratégicas, que colocam a política de defesa brasileira a reboque dos interesses geoestratégicos dos EUA.
Assim, o Brasil ingressou como força auxiliar do Comando Sul dos EUA e tornou-se aliado extra regional da OTAN, consolidando uma condição de subalternidade estratégica, em relação àquele país. Lembre-se, adicionalmente, que, em 2017, o Brasil convidou forças dos EUA a participarem de exercícios militares na Amazônia, um ponto fora da curva na história da política de defesa brasileira. A venda da Embraer à Boeing, que comprometerá nossa autonomia no desenvolvimento de tecnologia de ponta na área aeroespacial, também se insere nessa triste tendência. O mesmo acontece com o Acordo de Alcântara, recentemente ratificado.
Essa opção pela subalternidade obedece a dois fatores básicos. Um é o político-ideológico. Setores maias conservadores das Forças Armadas tornaram-se hegemônicos com o golpe de 2016 e com a ascensão de Bolsonaro. Esses setores, caudatários da antiga Guerra Fria, consideram essa aliança com os EUA algo natural e desejável, no quadro de disputa geoestratégica entre esse país e outras potências, como China e Rússia. Fizeram uma opção contra os BRICS.
Mas há também o fator econômico. Segundo o documento oficial “Cenário de Defesa 2020-2039”, “as demandas reprimidas, bem como a limitação orçamentária imposta pelo Novo Regime Fiscal (Emenda Constitucional nº 95), ampliarão a obsolescência e inviabilizarão a configuração das atuais Forças Armadas em padrões de potência militar de médio porte (como França, Reino Unido, Alemanha, por exemplo)”. Desse modo, as próprias Forças Armadas preveem um cenário de desinvestimentos e obsolescência tecnológica, que deverá perdurar por décadas.
Nesse contexto, a aliança militar e tecnológica a ser consolidada pelo MIEA e o RDT&E representaria uma renúncia ao desenvolvimento tecnológico relativamente autônomo e uma aposta numa relação de dependência econômica e tecnológica com os EUA para o seu reaparelhamento.
Trata-se, contudo, de uma aposta ingênua e perigosa.
Todo o mundo sabe que os EUA não compartilham tecnologia relevante, a não ser para aliados escolhidos a dedo e em casos excepcionais, quando esses aliados estão envolvidos em conflitos de interesse direto dos norte-americanos. É, por isso, aliás que, para usar a nossa base de Alcântara, os EUA impuseram um acordo de salvaguardas tecnológicas que prevê não apenas a proibição de repasse de tecnologia norte-americana ao Brasil, mas também a proibição de que o nosso país coopere com outros países para obtê-la.
Esse é um dos motivos que explica por que o Acordo RDT&E firmado, em 2016, entre Chile e os EUA, até hoje não foi aprovado pelo Congresso chileno.
Setores do Congresso do Chile questionam fortemente o acordo, alegando que ele não tem transparência, não explicita as áreas e os produtos que serão desenvolvidos e não especifica os gastos que o Chile terá com a cooperação almejada, pois o acordo afirma que os custos serão distribuídos entre as Partes, de forma equitativa.
Há também a desconfiança de que os EUA estariam usando o Acordo RDT&E para tentar se apropriar de pesquisas que o Chile estaria fazendo na Antártica.
Essa desconfiança com o acordo se intensifica no quadro do governo Trump, que é extremamente protecionista e não parece disposto a conceder nada de relevante a outros países, nem em termos econômicos, nem em termos tecnológicos.
Achar, portanto, que, com esse acordo, o Brasil vai aceder a bilhões do fundo norte-americano, desenvolver produtos realmente inovadores na área da defesa e se reaparelhar é de uma ingenuidade inacreditável.
O mais provável é que os EUA usem desse acordo e da relação de subalternidade para se apossarem de informações da Embraer na área militar e de dados estratégicos sobre a Amazônia, bem como para pressionar o Brasil a ser seu gendarme regional, em troca do desenvolvimento de “produtos binacionais” de escassa relevância.
O mais preocupante, contudo, é que os EUA estariam pressionando o Brasil a não enviar o acordo para ser apreciado pelo Congresso Nacional.
Com efeito, em documento já desclassificado do Comando Sul, disponível aqui afirma-se que “the Brazilian MOD has indicated that the copy of the RDT&E that they currently have under consideration must be presented to the Brazilian Congress for ratification as it is a legally binding agreement between nations. U.S. Army HQDA ASA ALT is bringing this issue before general counsel to determine the correct language in order to convince the Brazilian MOD that the RDT&E can be signed BY the MOD under the DCA without consultation of the congress. [O Ministério da Defesa brasileiro indicou que a cópia do Acordo RDT&E que está atualmente em consideração, deve ser apresentada ao Congresso brasileiro para ratificação, pois é um acordo legalmente vinculante entre as nações. O Secretário Adjunto do Exército (Aquisição, Logística e Tecnologia) dos EUA está levando esta questão ao conselho geral para determinar a linguagem correta, a fim de convencer o Ministério de Defesa brasileiro de ue a RDT&E pode ser assinada pelo Ministério de Defesa sob o Acordo de Cooperação em Defesa sem necessidade de consulta ao Congresso]*.
Em outras palavras, as autoridades militares dos EUA esperavam convencer o Brasil a não enviar o texto do RDT&E ao Congresso brasileiro, baseadas apenas no fato de que o Acordo de Cooperação na Área da Defesa entre Brasil e EUA (DCA) já foi ratificado por ambos os países.
Pode ser apenas pressa e desejo de economia processual, mas o fato é que isso fortalece as suspeitas sobre tal acordo. Observe-se que não consta que o acordo antecessor (MIEA) tenha passado pelo Congresso Nacional.
Vivemos tempos estranhos e há algo a mais no ar que os aviões da Embraer.
Artigo de Marcelo Zero, sociólogo, especialista em Relações Internacionais e assessor da liderança do PT no Senado
Por Brasil de Fato | Tradução livre da edição.