Ana Flor: O desafio de ser uma professora travesti frente o governo Bolsonaro
“Pensar as interferências políticas frente a identidade travesti, nesse momento, é compreender que as problemáticas que nos envolvem também são políticas”
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Desde que me vi frente a emergência de escrever o texto “E se professora do seu filho fosse uma travesti?” venho refletindo sobre os desafios que estão sendo (e serão) lançados através e a partir da instalação do governo Bolsonaro no Brasil. Os grandes impactos já afetam vidas LGBTs e o campo da educação, o que já era esperado se pensarmos o funcionamento e engrenagens de um governo neoliberalista e seus ritos .
Para iniciar essa conversa, gostaria de salientar que estou inserida em um processo de construção da identidade docente. Hoje, graduanda no sétimo período do curso de pedagogia da UFPE, tenho pensado novas possibilidades de práticas pedagógicas que viabilizem uma docência travesti, o que acaba por construir tensões se analisarmos a atual conjuntura na qual estamos submetidas. Engana-se quem acredita que o cotidiano político brasileiro não interfere e afeta na vida de professoras e professores, escolas e alunos. Além disso, no “modus operandi” de ensinar e aprender, chamado por nós de “ensino-aprendizagem” possível dentro das impossibilidades do governo bolsonarista e suas constantes ameaças.
Na grade curricular do curso de Pedagogia da UFPE, hoje, são ofertadas disciplinas das quais tenho como obrigatória estágios em espaços escolares. São nesses momentos, dentre muitos outros, no qual torna-se possível estabelecer trocas com as instituições escolares e todo o seu corpo docente e discente. Nesse movimento, são construídas brechas que proporcionam um melhor entendimento das práticas educativas que ocorrem no chão da escola. Ser uma professora e, além disso, ser uma travesti, me permite algumas reflexões das quais gostaria de compartilhar com vocês.
Uma das autoras mais renomadas no campo da Educação, Guacira Lopes Louro, vai trabalhar no seu famoso livro “O corpo educado” regulações e disciplinamentos que são postos, nos espaços escolares, em corpos tidos enquanto “dissidentes”. Dentre esses, os corpos e a identidade travesti. Não é novidade alguma que a presença de uma travesti (aluna) em uma instituição como a Escola sempre provocou deslocamentos e lacunas em uma estrutura que historicamente compactua com a exclusão dessas. Imaginem então quando essas mesmas travestis voltam para esse espaço-lugar mas desta vez professora? Este é o meu caso.
O debate de ideologia de gênero provocou na população brasileira uma histeria coletiva e trouxe danos irreparáveis para a população LGBT, com ênfase para quem atua e trabalha no âmbito educacional. As palavras “doutrina, kit-gay, mamadeira de piroca” foram usadas como meio de censurar trabalhos de professoras e professores que visam uma educação diferenciada, pública e de qualidade, reverberando as tendências punitivistas de um desgoverno de direita e suas falcatruas. Tal como atingindo, certamente, um determinado público.
Pensar as interferências políticas frente a identidade travesti, nesse momento, é compreender que as problemáticas que nos envolvem também são políticas. Uma travesti “não pode” ser professora no Brasil porque o Estado, junto de um campo associado de instituições, criou um projeto transfóbico de vida e de mundo no qual não consta outras possibilidades para essas. Ou seja: caso travestis consigam criar mecanismos e estratégias para burlar essas técnicas, serão taxadas com um alto nível de periculosidade. Porque tudo que não é cis, é trans e travesti, e isso quer dizer, ainda que por hora, uma fuga do controle hegemônico.
Assim sendo, um dos planos de fuga (ou de enfrentamento, a depender do ponto de vista) é garantir que mais travestis estejam migrando para o campo da educação. Essa, sem dúvidas, é uma tática de guerra que precisa ser usada massivamente no Brasil. Garantir a inserção de travestis no ensino superior deve ser colocado como meta para os próximos 5 anos. Mudar a rota, o percurso das travestis na história brasileira é reescrever outras visões de mundo possível. Tenho alegremente chamado de “prosperidade travesti”. E não quero com isso dizer que as coisas irão ser resolvidas, mas sim levantar hipóteses de que é possível um embate com as tecnologias que nos violentam e tornam nossos corpos dóceis e matáveis. Além de nossos corpos, nossa atuação docente.
Por fim, reitero que o plano de governo bolsonarista visa sucatear vidas travestis. Bem como o ensino público. Logo, pensar alternativas e criação de uma educação na qual o pensamento cisgênero não seja o centro, é desmantelar dispositivos que insistem nos domesticar mas esquecem das artimanhas travestis e dos nossos talentos mesmo quando sempre nos quiseram o mais absurdo: às margens e o esquecimento. Em outras palavras: se cuidem, nós podemos ser muito mais do que o imaginário social brasileiro projeta.
Ana Flor Fernandes Rodrigues é graduanda no curso de pedagogia pela UFPE. Pesquisadora em temáticas como gênero, sexualidade e travestilidade na educação