André Lozano e Jacob Filho: A condenação como único resultado possível

Jogar Lula aos leões era a possibilidade viável para Sergio Moro, que usa o processo judicial para atingir e excluir o réu

O sentimento de justiça está umbilicalmente ligado à aplicação do direito. Acredita-se que a lei deve tratar todos de forma igualitária, que os juízes, ao se depararem com uma questão, devem ser isentos e não levar sentimentos ou interesses pessoais para o processo. A imparcialidade é algo que se exige do julgador para que o processo tenha um mínimo de credibilidade. Dizemos que um juiz de direito pouco se diferencia de um juiz de futebol, se o juiz é torcedor de um dos times que está em campo, é provável que o apito auxilie o time de coração. Da mesma forma, se um juiz tem tendências para condenar ou absolver um réu antes das partes apresentarem todas as provas e argumentos, o processo não correrá da forma correta.

Segundo a lei brasileira, quando o juiz ou as partes verificarem algo que o torne parcial, deve se afastar do processo, a fim de manter a isenção e assegurar a credibilidade do procedimento. Essa questão é básica no que concerne à isenção do julgador. É inimaginável que um réu aceite uma sentença proferida por um juiz que se declarou ou se mostrou em algum momento como seu inimigo. Quem aceitaria que a vítima de um crime fosse o julgador da pessoa que está no banco dos réus? Ela pode ser movida por diversos sentimentos, que vão desde a vingança até o interesse por uma indenização. Devemos lembrar que, assim como o amor, o ódio pode cegar as pessoas.

Se já há dúvida sobre a isenção de um julgador que foi vítima de um crime, vamos imaginar um julgador que cometeu um crime contra o réu. Pior, vamos imaginar que esse julgador cometeu o crime após as investigações terem se iniciado, que ele utilizou sua influência e as informações que tinha para prejudicar o acusado e o crime cometido pelo julgador tivesse estrita relação com o que se apura no processo. Essa pessoa seria isenta para dar uma sentença?

A primeira questão que temos que levar em conta é que a pessoa que cometeu o crime e está na posição de julgador certamente tentará justificar sua conduta. Alegará que foi necessário praticar o crime para evitar um mal maior. Apresentará justificativas, que podem ou não ser plausíveis para mostrar que aquela conduta era estritamente necessária.

Interessante que o julgador ficará refém de seu crime. Ele terá que decidir reiteradamente contra o acusado a fim de mostrar que a sua decisão foi correta, do contrário, ficará claro que o julgador agiu sem amparo legal com o intuito de prejudicar o acusado e, mesmo assim, não conseguiu provar os crimes do qual o réu é acusado. Assim, durante todo o processo, haverá uma série de decisões contrárias ao acusado para culminar na sua condenação. Só se a decisão que coroa o final do processo penal for condenatória é que o crime cometido pelo julgador será tido como aceitável.

Se estivermos falando de um sistema político que se intitula democrático é necessário, também, que conte com o apoio de pessoas que ratifiquem suas decisões, que, uma vez que o crime está tão nítido que não se pode dizer que ele não ocorreu, que diga que essa decisão era absolutamente necessária.

Com o que foi descrito acima pode-se criar o enredo de um conto de Kafka, na qual a justiça é utilizada para atingir ou excluir pessoas. Certamente se trata da imaginação de alguém que está acostumado com um judiciário que está nas mãos de poucos e que esse tipo de coisa é encoberta para não gerar indignação das pessoas.

Mas e se isso acontecesse às claras? Com todas as pessoas acompanhando cada episódio, com o próprio julgador mostrando o crime cometido – claro que sem admitir que se tratou de um crime, mas de algo necessário para que houvesse combate ao crime. As pessoas veriam um agente estatal cometendo um crime em nome de um bem maior, e as pessoas que deveriam zelar pelo cumprimento da lei aprovando os crimes cometidos contra os acusados. Tudo isso seria amplamente divulgado pelos meios de comunicação como algo normal e correto, a maior parte das pessoas aprovaria e aplaudiria o julgador por supostamente ter salvado a sociedade. Os responsáveis pelo cumprimento da lei aprovam o descumprimento da lei em nome de um bem maior. De Kafka passamos a Zamyatin e George Orwell, nas suas literaturas distópicas em que criticam o regime Stalinista.

Por mais que isso pareça o plano de fundo de um livro de ficção, mas isso foi muit similar ao que ocorreu recentemente no Brasil. Diferente das histórias contadas por Zamyatin e Orwel, isso ocorreu num regime Democrático em que os direitos e garantias do cidadão e os procedimentos e leis penais e processuais deveriam ser respeitadas.

O caso das escutas telefônicas

Trataremos aqui apenas de fatos já amplamente noticiados e que são incontroversos. Aqui não trataremos de pormenores sobre negativa de produção de provas, alegações feitas pela acusação e defesa, tampouco aspectos técnicos das decisões judiciais no que concerne aos casos julgados pelo juiz Sérgio Moro em que o acusado é o ex-presidente Lula. Trataremos apenas da evidente suspeição de Moro.

No dia 16 de março de 2016, o juiz Sérgio Moro dá despacho em que suspende o sigilo telefônico das interceptações telefônicas de Lula sob o argumento de que:

“O levantamento propiciará assim não só o exercício da ampla defesa pelos investigados, mas também o saudável escrutínio público sobre a atuação da Administração Pública e da própria Justiça criminal. A democracia em uma sociedade livre exige que os governados saibam o que fazem os governantes, mesmo quando estes buscam agir protegidos pelas sombras.”[1]

Não há nenhuma dúvida de que o sigilo das interceptações telefônicas foi ordenado por Sérgio Moro. A atuação também foi claramente contrária à lei. O artigo 10 da Lei 9.296/1996 estabelece ser crime quebrar o segredo das interceptações telefônicas. O Art. 8º da mesma lei determina que as interceptações telefônicas correrão em autos apartados e sigilosos, ou seja, não passíveis de divulgação.

Ainda que o sigilo pudesse ser quebrado, não era ele o juiz competente, uma vez que em uma das conversas gravadas e divulgadas uma das interlocutoras era Dilma Roussef, na época presidente do Brasil, de modo que o correto, ao ter acesso a tais gravações, apenas poderia ter enviado as interceptações ao STF, Tribunal competente para analisar as questões em decorrência do foro por prerrogativa de função.

Para que não paire qualquer dúvida sobre a ilegalidade de tal divulgação, é preciso dizer que até mesmo Moro admitiu ter errado ao divulgar os áudios. Claro que não admite ter praticado o crime do artigo 10 da Lei de Interceptações telefônicas, mas alega que “tenha se equivocado em seu entendimento jurídico”[2].

Após esse episódio lamentável em que um juiz se coloca na posição de acusador e guardião da democracia – esquecendo-se que numa democracia até o combate ao crime tem que ser feito com respeito às leis – o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, após advogados solicitarem o afastamento de Moro das dos processos da operação Lava-Jato, entendeu que Moro deveria continuar a julgar os casos. O que chama atenção é o fato de ser alegado que os processos da operação Lava-Jato “exigem soluções inéditas”[3]. Nesse ponto faz-se necessário traduzir o eufemismo dos desembargadores do TRF4. Quando eles alegam que Moro pode adotar soluções inéditas estão dizendo que ele pode agir fora da legalidade, pode descumprir a lei, para que atinja seus fins.

Importante frisar que os fins que devem não são os definidos por um processo penal democrático, que “deve ser encarado como um instrumento e limitação da atividade estatal, estruturando-se de modo a garantir a plena efetividade aos direitos individuais assegurados na Constituição Federal”[4], mas os fins esperados por uma parcela da população que desejava ver alguns políticos punidos, independente dos meios necessários para tanto.

Ora, se o objetivo do processo penal é a que se assegure direitos e garantias como contraditório, ampla defesa, devido processo legal e que sejam impedidos abusos estatais – lembrando que o juiz é um agente estatal – como explicar que o agir fora da lei é autorizado para garantir o interesse na administração da justiça? É contraditório que um membro do Poder Judiciário possa descumprir a lei em nome da legalidade.

O devido processo penal

Feitas essas considerações já ficou claro que no processo em Moro julga Lula, assim como no livro Nós, de Zamyatin, e 1984, de George Orwell, claras ilegalidades são aceitas sob o pretexto de que se está defendendo a sociedade.

Moro não foi provocado pelas partes para divulgar as interceptações, fez de livre e espontânea vontade, sob pretexto de defender a democracia. Ainda que possa parecer contraditório que uma pessoa queira defender a democracia descumprindo a lei, não questionamos a boa vontade de Moro. Quando Stalin promovia homicídios em massa, quando juízes da Alemanha nazista condenavam pessoas contrárias a Hitler ou quando os militares de ditaduras latino americanas promoviam a tortura de militantes políticos certamente acreditavam estar fazendo o que era melhor para a sociedade naquele momento. Apenas com o passar do tempo e com uma análise distanciada dos fatos foi possível verificar os graves equívocos e erros por eles cometidos, mas temos a mais absoluta certeza de que todos esses erros estão amparados nas melhores intenções possíveis.

Ocorre que o processo penal deve seguir as regras estabelecidas em lei para garantir a concretização dos direitos e garantias previstos na Constituição Federal, nos dizeres de Aury Lopes Jr.

O processo não pode mais ser visto como um simples instrumento a serviço do poder punitivo (Direito Penal), senão que desempenha papel de limitador do poder e garantidor do individuo a ele submetido. Há que se compreender que o respeita às garantias fundamentais não se confunde com impunidade, e jamais se defendeu isso. O processo penal é um caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena. Daí por que somente se admite sua existência quando ao longo desse caminho forem rigorosamente observadas as regras e garantias constitucionalmente asseguradas.[5]

Explicando, cabe ao juiz do processo penal garantir que as regras processuais serão observadas, que a lei será seguida e que direitos e garantias do acusado serão respeitados. Quando o juiz não apenas permite que as regras sejam desrespeitadas, mas é uma das pessoas que descumpre a lei, não haverá mais processo, mas apenas um simulacro de processo no qual o que se busca não é mais a apuração dos fatos, mas a condenação ou absolvição de uma pessoa a todo custo, mesmo que para isso seja necessário passar por cima das leis.

Se estamos falando de uma democracia e da defesa do Estado de Direito o julgador não pode permitir que leis sejam descumpridas seja para condenar seja para absolver o acusado. Um juiz que permite o descumprimento da lei sob o pretexto de defender a democracia, na verdade está contribuindo para que essa democracia desmorone, pois numa democracia agentes estatais devem agir dentro da legalidade. Não há jogo de palavras que possa justificar o descumprimento da lei dentro de um processo penal.

Da suspeição

O rol do art. 254 do Código de Processo Penal, que trata da suspeição, é exemplificativo, então qualquer outro motivo além dos previstos que possam acarretar a imparcialidade do julgador devem fazer com que ele se afaste do processo. A própria palavra suspeito já denota que a pessoa não goza de confiança, segundo o Dicionário Michaelis: “sem imparcialidade para manifestar uma opinião sobre determinado assunto”[6]. Assim, os juízes que, por qualquer motivo, demonstram ser parciais sobre determinados assuntos ou pessoas devem se afastar do julgamento.

Inclusive, uma das regras mais importantes do processo penal é que o julgador seja imparcial. O julgador deve se manter distante das partes, não pode pender nem para a acusação nem para a defesa. “a parcialidade cria a desconfiança e incerteza na comunidade e nas suas instituições”[7]. Mais, “a imparcialidade do juiz é requisito de validade do processo”[8]. Se o julgador pender para o lado da acusação ou da defesa ou se praticar atos que demonstrem agir com interesses alheios ao processo haverá dúvida se a decisão proferida ao final é correta.

Aury Lopes Jr. coloca em dúvida a parcialidade de um juiz que atua na gestão probatória, ou seja, que angaria provas no processo penal[9], imagine-se um juiz que atua contrariando a lei em desfavor de um acusado.

No caso do juiz Sérgio Moro, ele descumpriu uma lei e pode até mesmo ter cometido um crime ao divulgar as interceptações telefônicas de Lula. Em hipótese alguma um juiz que descumpre a lei contra os interesses do acusado é uma figura isenta para julgar essa pessoa. Ora, se o papel do juiz é fazer lei ser seguida, é inegável que um juiz que descumpre a lei não atua com a isenção necessária.

O próprio TRF4 utilizou um eufemismo para falar da ilegalidade cometida por Moro. O que seria não seguir regras comuns senão atuar de forma ilegal, sem respeito às regras processuais. Ficou claro que nesse caso os desembargadores não desejavam um julgador, mas um inquisidor que fosse atender o clamor de parte da sociedade por punição ao político mais importante da história recente do Brasil. Nesse sentido, foi dada carta branca para que praticasse atos que fugissem das regras processuais.

Também é preciso dizer que Moro ficou refém de sua decisão. No momento em que descumpriu a lei – admitindo tal fato ao desculpar-se com o STF –, ao levantar o sigilo das interceptações em nome do “saudável escrutínio público sobre a atuação da Administração Pública e da própria Justiça criminal”[10], tornou-se refém de sua própria decisão. Após tomar uma decisão claramente ilegal ele precisará demonstrar que Lula cometia os crimes dos quais é acusado, do contrário ficará claro que sua decisão foi não apenas ilegal, mas também equivocada e desnecessária.

Ele passa do papel de julgador para o papel de acusador. A isenção que se espera de um juiz na análise das provas trazidas pela acusação e defesa, que reflita sobre todos os argumentos apresentados pelas partes já não é mais possível. Ele demonstrou que possui um objetivo claro, condenar o acusado, pois esse acusado, segundo seu despacho, caso fique impune pelos crimes supostamente cometidos, colocará risco Administração Pública. O processo penal deixa de ser um instrumento para efetivação de garantias e de se buscar a verdade a ocorrência de um fato delituoso para ser um meio de se afastar o acusado da vida pública.

A partir do desrespeito à lei por parte do juiz e de atitude que claramente buscava prejudicar o réu, a imparcialidade de Moro fica clara. Dessa forma, não poderíamos esperar nada além de uma condenação. Aliás, ficou claro que a condenação do Lula era o único caminho possível para Sério Moro, uma vez que o desrespeito à lei exigiria que ao final do processo o acusado fosse declarado culpado.

[1] https://www.conjur.com.br/dl/decisao-levantamento-sigilo.pdf, acesso em 13 de julho de 2018.

[2] https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/moro-pede-desculpas-ao-supremo-por-divulgacao-de-audios-de-lula-e-nega-motivacao-politica/, acesso em 13 de julho de 2018.

[3] https://www.conjur.com.br/2016-set-23/lava-jato-nao-seguir-regras-casos-comuns-trf, acesso em 13 de julho de 2018.

[4] BRITO, Alexis Couto de; FABRETTI, Humberto Barrinuevo; LIMA, Marco Antônio Ferreira. Processo Penal Brasileiro. São Paulo. Atlas. 2012. p. 03

[5] LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 10ª ed. São Paulo. Saraiva. 2013. p. 62

[6] http://michaelis.uol.com.br/busca?id=ok1zG, acesso em 13 de julho de 2018.

[7] LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 10ª ed. São Paulo. Saraiva. 2013. p. 180

[8] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 16ª ed. São Paulo. Atlas. 2012. p. 290

[9] LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 10ª ed. São Paulo. Saraiva. 2013. p. 442

[10] https://www.conjur.com.br/dl/decisao-levantamento-sigilo.pdf, acesso em 13 de julho de 2018.

Por André Lozano Andrade, advogado especialista em Direito Processual Penal e coordenador do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, e Jacob Filho, advogado, membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa e da Comissão de Prerrogativas da Ordem dos Advogados do Brasil

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