Artigo | O caos no trabalho doméstico em tempos de pandemia
Artigo faz parte da série “Os impactos da pandemia da Covid-19 na vida das mulheres”, das comunicadoras e da Secretaria de Mulheres do PT – DF.
Publicado em
Comunicadoras Elas por Elas e Secretaria de Mulheres do PT – DF
O isolamento social, uma das recomendações das autoridades sanitárias internacionais para conter o avanço do coronavírus (Covid-19) no mundo, ocupa o centro do debate político no Brasil devido à resistência e negacionismo irresponsável do presidente Jair Bolsonaro, que prioriza a economia em detrimento da vida. Entre as mulheres, a recomendação sanitária adotada pela maioria dos governos estaduais e municipais também ganha centralidade, pois ao restringir atividades públicas e suspender serviços públicos, essa medida tem resultado na sobrecarga do trabalho doméstico.
Confinadas em casa, as mulheres brasileiras que têm o privilégio de manterem seus vínculos empregatícios, desenvolvendo suas atividades profissionais de forma remota (home office), já sentem os impactos da pandemia nas atividades domésticas e profissionais.
De repente as mulheres que já acumulavam jornadas de trabalho, ocupando-se entre a vida doméstica e o trabalho fora do lar, se viram ainda mais sobrecarregadas na obrigação de equacionar o tempo em confinamento com atividades de home office, tarefas domésticas cotidianas, exercício de funções relativas à educação formal de seus filhos (em virtude das aulas virtuais), cuidadoras de pessoas idosas ou incapazes, entre outras tarefas.
Desta forma, é urgente que os homens reconheçam seus privilégios também nesta esfera e assumam a obrigação de dividir todas as tarefas domésticas, incluindo os cuidados com membros da família, tais como filhos e idosos.
Uma Nota Técnica da Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia, do Instituto de Pesquisas Econômicas (IPEA), publicada em abril de 2020, reconhece que o isolamento e confinamento domiciliar podem impor “riscos à integridade física e psicológica das mulheres”, pois o acúmulo das jornadas de trabalho afeta diretamente a saúde física e mental das mulheres.
O documento, que trata dos efeitos de medidas sanitárias sobre grupos sociais e territórios vulneráveis, aponta exatamente a sobrecarga do trabalho doméstico como um destes riscos: “O primeiro risco diz respeito à sobrecarga das mulheres no trabalho doméstico e nas atividades de cuidado. A divisão sexual do trabalho socialmente construída e difundida na cultura nacional atribui tradicionalmente os trabalhos de manutenção do lar e de cuidado dos membros da família às mulheres”.
A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais de sexo. Nesta divisão, o trabalho produtivo, aquele com valor social agregado e, consequentemente, com reconhecimento econômico, é atribuído aos homens, enquanto o trabalho reprodutivo, aquele relacionado às tarefas domésticas e aos cuidados com a família, sem reconhecimento econômico, é atribuído as mulheres. Essa forma de divisão tem dois princípios organizadores: o da separação (existem trabalhos de homens e outros de mulheres) e o da hierarquização (um trabalho de homem “vale” mais do que um de mulher).
O documento do Ipea pontua, ainda, a pouca visibilidade da carga mental do trabalho emocional, posto que são as mulheres que, em geral, “assumem as tarefas de prever as necessidades de todos e se preocupar com a saúde de toda a família.”. Com esta percepção, a Nota Técnica acrescenta que: “em situação de isolamento social, percebe-se uma tendência de imposição de uma distribuição ainda mais desigual das cargas sobre as mulheres.”
No contexto de divisão sexual do trabalho, fazendo um recorte sobre a desigualdade entre as mulheres brancas e negras, constata-se que, também durante a pandemia, as mulheres não estão todas no mesmo barco. Importante ressaltar que é sobre as mulheres negras e pobres que recai, além do trabalho não remunerado em suas próprias casas, o trabalho doméstico e de cuidado remunerado em outras casas.
Há que se destacar, ainda, outra desigualdade existente que afeta, sobretudo, mulheres negras e pobres: uma parcela considerável de mulheres brancas possui emprego formal, enquanto mulheres negras estão majoritariamente no trabalho informal. O estudo aponta que são as trabalhadoras informais e autônomas, bem como as que estavam desempregadas, que foram atingidas direta e cruelmente, quando a medida sanitária foi adotada. Segundo o documento do IPEA, essas mulheres “não dispõem das condições mínimas para exercitar o distanciamento social, sem que este também venha acompanhado de riscos e ameaças ao seu bem-estar”.
O descaso do governo Bolsonaro na negação da gravidade do coronavírus, bem como a proposital morosidade nas políticas de auxílio e proteção para as parcelas historicamente vulnerabilizadas de nossa sociedade afeta e prejudica diretamente a vida dessas pessoas.
Estas parcelas sofrem muito mais desigualdades com o isolamento social, pois, frente às ameaças a sua sustentação financeira e à sobrevivência de suas famílias, elas se veem obrigadas a encarar, a um só tempo, o risco de contágio, a multiplicação das tarefas domésticas e a obrigação de suprir o ensino das crianças e os serviços públicos essenciais. Os próprios técnicos que avaliam os efeitos das medidas sobre segmentos vulneráveis, admitem que “grupos sociais historicamente submetidos a processos de vulnerabilização sofrem em intensidade desproporcional os efeitos adversos e a desatenção das medidas adotadas para o enfrentamento à crise.”.
Isto posto, urge defender a adoção de ações humanitárias para as mulheres em condição vulnerável nesse contexto de pandemia. Não é admissível que a estas restem apenas dor, sofrimento, solidão, invisibilidade e fome. Torna-se, portanto, imprescindível cobrar do Estado que ponha em prática as recomendações técnicas quanto aos riscos a que as mulheres estão submetidas durante a pandemia.
As respostas governamentais, nos níveis municipal, estadual e federal, devem urgentemente atender às demandas de todas as mulheres, em suas urgências e necessidades diversas, de modo a protegê-las dos riscos sanitários, econômicos e sociais, desses tempos de pandemia.
Comunicadoras Elas por Elas
Secretaria de Mulheres PT-DF
Fonte:
IPEA – INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Diretoria de Estudos e Políticas do estado, das Instituições e da Democracia. Nota Ténica: “Os efeitos sobre grupos sociais e territórios vulnerabilizados das medidas de enfrentamento à crise sanitária da Covid-19: Propostas para o aperfeiçoamento da ação pública”. Brasília: IPEA, 2020.