Artigo: O último aniversário da Eletrobras, por Ikaro Chaves
A Eletrobras, detentora de quase metade da capacidade de geração hidrelétrica do país, produz a maior parte dessa energia em usinas antigas, já amortizadas e que, por isso, vendem uma energia barata
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Era uma vez um grande país da América do Sul, abençoado por Deus com uma natureza privilegiada, onde caudalosos rios de planalto ofereciam o segundo maior potencial hidrelétrico do planeta e que também tinha vento e sol em abundância. Atributos que davam a esse país condições privilegiadas de produzir e fornecer energia barata e limpa para seu povo.
Nos anos 40 e 50 do século passado ainda não se vislumbrava a massificação da energia eólica, muito menos da energia solar fotovoltaica, mas já se sabia do gigantesco potencial hidrelétrico brasileiro. Foi então, que num contexto de industrialização e da incapacidade ou mesmo falta de vontade do oligopólio privado do setor, que Getúlio Vargas, em 1954, enviou ao congresso nacional o projeto de criação da Eletrobras. Foram necessários oito anos até que em 11 de junho de 1962 o presidente João Goulart finalmente criasse a empresa.
Ao longo desses 60 anos a Eletrobras, juntando a inteligência e o suor de gerações de brasileiros construiu um sistema interligado invejado em todo o mundo, baseado fundamentalmente em energia limpa e renovável, capaz de transmitir grandes blocos de energia a milhares de quilômetros de distância, otimizando e potencializando os nossos recursos naturais. A Eletrobras deu ao Brasil não só energia limpa e barata, deu também o domínio de tecnologia de ponta na construção civil e em toda a cadeia produtiva vinculada à indústria eletromecânica.
Mas em algum momento dos anos 1990 esse grande país começou a perder o rumo. Achou que o setor elétrico era uma indústria qualquer, que poderia ser simplesmente entregue às mãos invisíveis e gananciosas do mercado. O setor elétrico começou a ser privatizado pelas distribuidoras, a bilheteria do sistema. Logo partirampra cima da Eletrobras, que proibida de investir, foi sendo preparada para a privatização.
O resultado não tardou e o século 21 começou com o maior racionamento já visto em um país em tempos de paz. O setor privado não investiu, preferiu colocar dinheiro nas privatizações das empresas estaduais e sem investimento público nem privado, bastou uma seca um pouco mais severa para desencadear a crise.
No novo ciclo de desenvolvimento e inclusão social, iniciado por Lula foi ela, a sobrevivente Eletrobras, quem comandou a maior expansão da história do nosso setor, com investimentos de mais de R$ 200 bilhões. Foi a Eletrobras quem retirou o Brasil do “apagão”, forneceu a energia necessária para a retomada do crescimento e ainda cumpriu a missão civilizatória de retirar mais de 15 milhões de pessoas da escuridão, através do programa luz para todos.
Mas aí veio um golpe e a Eletrobras, ou melhor, o patrimônio e o bolso dos brasileiros entraram no butim. Nas conversas entre os oligarcas do BTG Pactual, grupo 3G et caterva, surgiu uma ideia genial. Não seria apenas vender a Eletrobras, tomando o cuidado de fingir uma desconcentração do mercado, vendendo as subsidiárias separadamente, como propunha FHC. Dessa vez não haveria essa veleidade, a Eletrobras seria vendida toda ela, com todo o seu poder de mercado, justamente para poder manipular os preços de acordo com seus próprios interesses.
Mas não era só isso. A Eletrobras, detentora de quase metade da capacidade de geração hidrelétrica do país, produz a maior parte dessa energia em usinas antigas, já amortizadas e que, por isso, vendem uma energia barata. Para os oligarcas e seus sócios no estrangeiro não interessa controlar a base do sistema elétrico desse país para vender energia barata. Daí surgiu a ideia da descotização, ou seja, fazer com que o consumidor pague de novo pelas usinas que ele já pagou ao longo de décadas. Genial! Por que vender energia barato se se pode vender caro?
Mas isso seria um crime. Jamais o congresso aprovaria isso.
Ora, compre-se o congresso. Lobbies de termelétricas e do barão do gás, Carlos Suarez, “convenceram” os parlamentares brasileiros, ainda que ao custo de R$ 150 bilhões de reais para os consumidores e de uma vergonhosa contribuição brasileira para a crise climática planetária.
E os órgãos de controle, e o judiciário e o TCU? Esses nunca foram obstáculo aos nossos oligarcas. Houve até um ministro do Tribunal de Contas da União que disse que se a Eletrobras fosse dele, ele não a venderia nessas condições. Mas como não era dele…
E assim chegamos aqui. Sessenta anos depois de criada, com muitas glórias e serviços prestados, com muito potencial para contribuir com o país, a Eletrobras chega a seu último aniversário. No próximo dia 14 a Eletrobras acaba e no seu lugar nasce outra coisa. Não mais uma empresa dos brasileiros, a serviço dos brasileiros e com a missão de levar desenvolvimento e qualidade de vida a esse sofrido povo. A partir do dia 14 a Eletrobras, ou qualquer que seja o nome que os seus novos donos queiram dar, será um monstro a sugar o bolso do consumidor e a travar nosso desenvolvimento enquanto país.
Energia elétrica não é um produto qualquer, não é como cenouras que se pode deixar de consumir, substituir por outra coisa, importar ou que se possa resolver para a próxima safra. A energia elétrica é um produto essencial, insubstituível e as pessoas vão ter que pagar o preço que for cobrado, pois não há como viver sem ela. Energia elétrica não é só um serviço essencial para as famílias, é insumo básico de todas as cadeias produtivas. A energia elétrica é condicionante para qualquer processo de crescimento.
Apesar de o argumento usado para justificar a privatização da Eletrobras ter sido a falsa alegação de falta de capacidade de investimento da empresa, não há na lei da privatização nenhuma obrigação dos novos donos de investir um real se quer na expansão do sistema elétrico do país. Aliás, o mundo está cheio de exemplos de países que privatizaram seu setor elétrico e onde as empresas deliberadamente não investiam, plantando escassez e colhendo aumento do preço da energia.
O Brasil a partir do dia 14 desse mês será um país sem qualquer instrumento efetivo de intervenção no setor mais básico de sua infraestrutura. O novo Brasil que se abre, seja qual for o próximo presidente, será um país que dependerá da chuva e da boa vontade dos fundos de investimento internacional e de seus oligarcas locais para ter acesso a energia.
Energia elétrica como uma comoditie, um produto de especulação, um instrumento de dominação de um país e de espoliação de um povo. Esse é o Brasil que nasce em 14 de junho, após a morte da Eletrobras.
A privatização paulatina do setor elétrico brasileiro conseguiu a proeza de transformar um país que produz energia limpa, renovável e barata em um dos campeões internacionais da energia cara para o consumidor. Restava a Eletrobras para manter algum controle sobre isso. Agora não mais. Morre junto com a Eletrobras um pedaço importante da soberania do país, que agora estará completamente sujeito à boa vontade dos capitais internacionais e seus sócios brasileiros.
Ikaro Chaves é Ikaro Chaves é Diretor da Associação dos Engenheiros e Técnicos do Sistema Eletrobras – AESEL.