Arte Pública: poética e política nas ruas

Flávio Aniceto* O tema deste pequeno texto é a Arte Pública, a arte de rua e os artistas de rua, para concebê-lo, estamos utilizando o exemplo de uma lei do…

Flávio Aniceto*

O tema deste pequeno texto é a Arte Pública, a arte de rua e os artistas de rua, para concebê-lo, estamos utilizando o exemplo de uma lei do município do Rio de Janeiro, mas é sabido que estes grupos, as suas demandas e questões estão presentes na maioria dos municípios brasileiros, de modo que, tendo legislação específica ou não, o debate é válido para muitos companheiros.

Em junho do corrente se comemorou primeiro aniversário da chamada Lei do Artista de Rua, de autoria do Vereador Reimont, do PT/RJ, aprovada pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro. A partir desta legislação os diversos artistas e grupos que atuam nesta área – palhaços, atores, cantores, músicos, performáticos, mágicos, poetas e muitos outros – puderam comemorar a conquista, uma vez que ganharam argumentos legais contra a repressão e a burocracia imposta por agentes públicos às suas ações culturais em ruas e praças. Mas como reflexo ou consequencia da lei recomendamos que fiquem de olho vivo, para não caírem na acomodação fácil, acreditando que estão dentro do “status quo” artístico ao se institucionalizarem. É importante se aterem a origem e a função da arte que escolheram para atuar e que é autônoma e independente por natureza.

Hoje este fazer artístico é denominado Arte Pública e segundo Amir Haddad (dramaturgo consagrado e fundador do pioneiro grupo carioca Tá na Rua) é aquela “que se faz e se produz por todos, em espaços variados, sem distinções de classe ou gênero”. Acreditamos que é possível associar esta definição aos conceitos de Cidadania Cultural (conforme Marilena Chauí) e a dialogicidade e a autonomia no processo educativo e cultural (segundo Paulo Freire). A cidadania e o diálogo são ativados no contato sem mediação entre os artistas e o público, que é também o patrocinador direto (através do simbólico e efetivo ato de “passar o chapéu” ao final de cada espetáculo). Em alguns casos mais do que expectador, o público passa a sujeito cênico, podendo ser convocado para participar de um esquete ou cena.

Então a Arte Pública é feita e se legitima a partir da lida direta com os transeuntes das cidades. A prática artística na rua é única, instantânea, direta e alternativa. Mesmo que tenha um texto ou ideia base, cada espetáculo tem um desenvolvimento próprio (inclusive pela participação do público), não é possível a repetição daquele momento (mesmo que eventualmente se registre para documentação ou outro fim). É uma arte que não pode se incluir nos métodos de reprodução da indústria cultural alertados por Walter Benjamin. Não se presta por natureza a isto.

Vale lembrar que os artistas de rua estão presentes na maioria das cidades brasileiras, seja pela falta de equipamentos culturais, assim como pela pesquisa estética. Não é exagerado lembrar que o PT deve muito a estes grupos, seja como “agitadores culturais” em campanhas políticas ou eleitorais, seja como componentes ativos dos núcleos e diretórios municipais do partido.

A institucionalização pode trazer um aumento de espaços e meios disponíveis, mas também da “oferta” que pode ou não ter “demanda”. Recentemente em matéria para o Jornal O Globo, do Rio de Janeiro, a repórter Elenilce Bottari, aponta que com o amparo legal, artistas de rua vindos até do outros países se multiplicam, o que é corroborado por Ademir Leão, – um conhecido saxofonista que atua há mais de 20 anos na entrada da estação do Metrô Carioca, uma das mais movimentadas da capital fluminense – para quem “a rua ensina muito”. Ele que é apontado como um dos pioneiros na atividade reconhece que depois vieram muitos outros para as ruas. São cordelistas, companhias de atores, contorcionistas, malabaristas, palhaços, e grupos diversos como rappers, companhias folclóricas, bandas, inclusive com estrangeiros e músicos profissionais e até músicos de formação clássica.

A arte de rua existe desde a Antiguidade e hoje se institucionaliza, não só pela conquista da lei, mas ainda por projetos, programas e políticas culturais de incentivo. Mas, é preciso a precaução de entender que é uma arte que não se deixa (ou não deveria se deixar?) instrumentalizar por “causas” ou formalizações, pois isto seria atentar contra a sua própria razão de ser e modus operandi.

Um tipo de artista de rua recorrente nas cidades brasileiras é o palhaço, o qual tem historicamente, desde os chamados bobos da corte, a “missão” de ouvir as aspirações do povo, das ruas, mas, sobretudo, tem a função de interpretar o real com humor. É, em nosso entendimento, um mediador cultural. O palhaço é multifacetado e pode ser associado a outras figuras como o coringa, o malandro, o cronista, sendo aquele que capta a fala das ruas, representa as angústias da cidade, do cidadão e da cidadania. Alguns autores o comparam a figura do trickster que é um personagem de origem mitológica, presente em várias culturas, que, tem uma função de interligar dois mundos, duas realidades diferentes, como Hermes, na Grécia Antiga, que ligava os deuses aos homens; Cristo, que é divino e humano; e Exu o mensageiro entre os homens e os demais orixás no Candomblé ou entre os homens e determinados espíritos “de rua” (ciganos, pomba-gira, caboclos, malandros como Zé Pelintra e Tranca-Rua) na Umbanda. Mas é preciso não incorrer no erro – presente na indústria cultural e na arte reproduzida em larga escala– de infantilizar e domesticar o palhaço. Vemos que hoje, muitos que se lançam na profissão, renunciam ou não conhecem a tradição burlesca, transgressora e grotesca do palhaço o que desvirtua a sua função artística, vide os palhaços televisivos.

Não desqualificando as diversas expressões culturais que ocorrem nas nossas cidades, algumas mais visíveis, outras “adormecidas”, acreditamos que a Arte Pública conjuga a poética à política, tendo uma função gregária. Pelo lado da arte, pode conjugar ou dialogar com elementos de ao menos cinco áreas de expressão artística – o teatro, a música, o circo, a dança e mesmo às artes visuais e até a cultura digital.

Aqui não temos a velha ideia de “formação de platéia”, ao contrário, existe um público sendo “formado”, mas também formador, que não só frui como pode interferir na ação. De modo que estes artistas têm uma função política, talvez não assumida ou percebida pelos membros, mas ainda assim bastante eficaz.

A ação destes grupos exerce na prática o direito à cidade, inclusive transformando muitas vezes áreas degradadas em espaços de convivência. É uma arte que mostra aos moradores “comuns” que eles também podem ser sujeitos culturais e cidadãos e que a arte não pode ser limitada aos chamados “lugares” da cultura – como os centros culturais, os museus, as escolas, etc.-, contribui sobremaneira com um esforço de dar ainda mais visibilidade a cultura nos diversos locais. Afinal, “A Praça Castro Alves é do povo…”

* Cientista social e produtor cultural, Mestrando em Bens Culturais no CPDOC/Fundação Getúlio Vargas. Filiado ao PT/RJ.

Referências:
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——————————- & NOGUEIRA, A. Que fazer: teoria e prática em educação popular. Rio de Janeiro: Vozes, 1989.
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