Enfrentar o negacionismo como fator cultural na crise do Covid-19

Essa pseudo-cultura do negacionismo, além de atacar os profissionais das ciências e da educação, ataca igualmente os artistas, intelectuais e trabalhadores da cultura.

Tião Soares e Simão Pedro Chiovetti

A crise sanitária planetária nos parece ser uma das mais intensas catástrofes nas últimas décadas. A atual pandemia mundial pelo Covid -19 conseguiu parar o mundo em seus mais diversos e variados aspectos. Um primeiro aspecto carecido de observação é a mudança de rotas do motor do capitalismo com a estagnação da economia. O setor industrial, um dos principais responsáveis pela geração de trabalho e renda encerrou parcialmente as suas atividades e com isto baixando salários de trabalhadores à metade e em muitos casos a demissão de milhares de trabalhadores, causando aumento do desemprego e da desagregação social.

 

Há, notadamente, outros aspectos merecidos de ser pontuados como fatores causadores do desemprego e que são parte de enormes contingentes de atuação dos trabalhadores autônomos, como no ramo da construção civil, empregos domésticos, serviços em hotelarias, bares, restaurantes e outros serviços essenciais que deixaram de ser considerados no cômputo das estatísticas governamentais. São os chamados empreendedores individuais defendidos pelo capitalismo como sendo a principal novidade de avanços sociais e, por esta razão, a defesa da deformas trabalhista e da Previdência Social que retirou direitos sociais conquistados há décadas pelas lutas sociais.

A sociedade dos desiguais teve o seu apogeu afirmado e desveladas as reais situações de abandono e das vulnerabilidades sociais porque passam a maioria do povo do planeta e, em particular, do povo brasileiro; o que se pode desconfiar que tal situação se deve às ausências de políticas públicas,  e  pelo notável  negacionismo às poucas políticas que ainda restaram, ilustrado pelo o caso do SUS.  As precárias condições de vida das populações de baixa ou de nenhuma renda começam a se agravar com o alastramento do vírus do Covid-19, forjando revelar a gravidade da crise social que assola o mundo globalizado; tendo, notadamente, o Brasil como o principal exemplo das imensas e intensas desigualdades sociais e isto, como não poderia deixar de ser, sobretudo, pela irresponsabilidade de um governo retrógrado, neofascista, de extrema direita.

Ao lado das diversas maneiras de considerar o problema do Estado brasileiro examinadas até aqui, o apelo do chamamento à população ao confinamento social, são exemplos que não deixam se passar à margem de uma realidade dura e cruel em que vive a imensa maioria da sociedade. O isolamento social é sem dúvida um método importante e eficaz no estancamento da proliferação do vírus. A aplicação do método ajuda a desvelar a grave crise social obscurecida, sob o manto denso “do faz de conta”, cujas faces da omissão do estado se sobressaem aos olhos dos mais desapercebidos. A precariedade e as ausências de políticas públicas de saúde, de geração de rendas, de moradias e de habitabilidades foram desnudadas, e o rei ficou nu.  O isolamento social é, nomeadamente, condição imprescindível ao estancamento da curva da transmissão do vírus na população. Por outro lado é também um modo de se mostrar a ineficiência dos serviços públicos de saúde. Frente a esses argumentos há de convir que à eficácia do método faz-se necessário a existência de políticas públicas adequadas sobre moradia e habitabilidade, renda básica e outros fatores de seguridade à população em suas residências.

Neste contexto, percebe-se um imenso contingente de trabalhadoras e trabalhadores, geralmente fora das estatísticas comuns, os profissionais das artes e da cultura.  Este segmento social foi um dos primeiros e mais duramente atingidos pelo covid-19. São profissionais que têm um mercado de trabalho marcado pela informalidade, por contratos temporários, por projetos de curta duração; têm muitas atividades que não são sequer monetizadas (especialmente nas manifestações de cultura popular, nas trocas de trabalho etc.); e que muitas dessas atividades foram simplesmente canceladas, descontinuadas, sem nenhum tipo de direito, ressarcimento, bonificação, multa ou algo similar – simplesmente as pessoas perderam a renda. Os trabalhadores da cultura não estão ainda incluídos como possíveis beneficiários da renda emergencial aprovada pelo Congresso Nacional.

Há que se ressaltar que essa pseudo-cultura do negacionismo usada pela Direita mundial e brasileira como método de tentar turvar a realidade e dominar pela ignorância, além de atacar os profissionais das ciências e da educação, ataca igualmente os artistas, intelectuais e trabalhadores da cultura. Distorce-se a realidade com “fakenews” e outras mentiras infames para jogar o povo contra esses profissionais, que são muitas vezes espoliados. É muito comum se constatar sobre a negação ao reconhecimento sobre os direitos autorais que recorrentemente não são pagos para muitos segmentos. Impostos gerados a partir do setor cultural ou que ativa em outros segmentos (como o de contas de internet, compras de celular e computadores, streaming, dentre outros) simplesmente não retornam para o setor, o que se traduz em mais uma depauperação ao campo cultural. Em análise recente sobre a precariedade das políticas voltados à cultura, o professor Marco Acco, da UFPB, afirma: “os fundos de cultura recebem invariavelmente bem abaixo de 1% das receitas tributárias (algo em média próximo a 0,2% das receitas tributárias), sendo que a cultura contribui direta e indiretamente com muito mais que isso. Mesmo com o aumento do acesso aos streamings de conteúdos culturais durante a pandemia esse aumento não volta para o setor cultural”.

Desta mesma maneira, podemos imaginar que a contribuição da cultura à saúde da sociedade é de tal envergadura que em situação de isolamento social e de individualismo, a única indústria que não para e continua a gerar rendas aos outros setores é a das artes e da cultura; isto, em grande medida atravessa o mundo das subjetividades mostrando sinais vitais, capazes de produzir contraponto ao tenebroso isolamento dos seres humanos onde a ideia de solidão passa a ser superada pelo convívio harmonioso através da arte e a cultura pelo acesso à música, ao cinema, a internet, entre outros. Esta maneira de convivência faz uma enorme diferença sobre o acesso ao consumo desfreado, apregoado pelo capitalismo na defesa incessante na melhoria da performance do chamado PIB. Assim, o isolamento social em convivência harmoniosa com a arte e a cultura se produz a FIB (Felicidade Interna Bruta) pela geração do bem estar social e da afetividade. Imagine-se o que seria viver no isolamento social sem o acesso à cultura: a sociedade iria à loucura ou se suicidaria!

O discurso sobre a importância do campo da cultura à saúde, deveria se contrapor ao que o setor cultural vem sofrendo ao longo dos anos, com os frenéticos declínios de investimentos públicos, ao lado do desmonte das instituições públicas de cultura pelo governo federal em seus mais diversos programas de incentivo e fomento e nas linhas de crédito. Isto, em grande medida, tem sido a marca dos governos autoritários. O campo da cultura tem sido um setor de pouca atenção e reconhecimento, quando não tratado com precariedade, onde a maioria de seus profissionais encontra-se sem reservas financeiras para a sobrevivência e serão os últimos a sair da crise. Grande parte de suas atividades dependem da presença de público em ambientes fechado. Assim, podemos dizer fundamentados nesses aspectos que o setor cultural é um dos segmentos mais duramente atingidos.

E o que o setor reivindica neste momento? O básico. No Estado de São Paulo, a aprovação do Projeto de Lei 253/2020, de autoria coletiva de parlamentares de PT, PSOL e PCdoB, que coloca foco no auxílio imediato a trabalhadoras e trabalhadores da cultura que estão na base da produção e para os espaços culturais, em especial os periféricos e de pequeno porte, que correm o risco de desaparecerem e fecharem suas portas definitivamente, perdendo assim um território e públicos conquistados com muito trabalho, na maioria das vezes às duras penas, em áreas de risco, violências, desinteresse socioeconômico. Temos exemplos de bairros e regiões de diversos municípios recuperarem autoestima através das ações culturais de continuidade.

A inclusão de agentes culturais do programa Renda Básica Emergencial do Governo foi aprovado pelo Parlamento, mas não foi ainda sancionado pelo presidente, que não esconde sua má vontade com o setor. Essa demanda poderia, por outro lado, também ser resolvida com a aprovação do Projeto de Lei 10.75/2020 de autoria da deputada Benedita da Silva e na qual foram apensados outras 3 iniciativas que também dialogam com esse objetivo. E não vemos problemas na aprovação das duas iniciativas, a federal e a estadual, pois podem ser trabalhadas como ações de complementariedade, visando a maior distribuição possível de recursos garantindo condições de sobrevivência a todas e todos que trabalham na Cultura.

Tião Soares é doutor em Ciências Sociais, mestre em educação e especialista em gestão e políticas culturais pela Universidade de Girona e Coordenador do Setorial de Cultura do PT/SP.

Simão Pedro é mestre em Sociologia Política, foi deputado estadual pelo PT por 3 mandatos e Secretário Municipal de Serviços na gestão Haddad.

 

PT Cast