Desde o golpe de Estado, 36,6 mil fábricas foram extintas no país
Desindustrialização derruba exportações de produtos de alta tecnologia, que totalizaram apenas US$ 1,35 bilhão no primeiro trimestre deste ano. É o segundo pior resultado para o período desde o início da divulgação dos dados, em 2010
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O Brasil enfrenta “um processo estrutural de desindustrialização” que afeta a produção de bens mais avançados tecnologicamente e agrava a perda de competitividade da indústria nacional. É uma das conclusões de um estudo da Confederação Nacional da Indústria (CNI) publicado no ‘Valor Econômico’ desta sexta (30), que passará a ser divulgado trimestralmente.
O levantamento aponta que as exportações nacionais de produtos de alta intensidade tecnológica somaram US$ 1,35 bilhão no primeiro trimestre deste ano. É o segundo pior resultado para o período desde o início da divulgação dos dados, em 2010. O pior foi registrado no primeiro trimestre do ano passado, quando a pandemia do coronavírus já afetava o comércio internacional.
A classificação por intensidade tecnológica divide a pauta de comércio exterior conforme a complexidade. Aeronaves, turbinas e peças de avião, medicamentos, produtos de química fina e máquinas especiais estão no patamar de alta tecnologia.
Em 2020, 5,5 mil fábricas encerraram suas atividades. Ao todo, desde 2015, foram extintas 36,6 mil. O equivalente a quase 17 estabelecimentos por dia, segundo o estudo da CNC
Embora as exportações desses bens de alta tecnologia tenham subido 4% de janeiro a março, na comparação com o mesmo período de 2020, e chegado a US$ 1,29 bilhão (cerca de R$ 7 bilhões), o valor é bem inferior aos registrados nos primeiros três meses de 2018 (US$ 2,5 bilhões) e de 2019 (US$ 2,1 bilhões).
Em contrapartida, as importações de alta tecnologia cresceram 18% no período, passando para US$ 8,1 bilhões. Houve alta de 46% nas compras de produtos da China, principal fornecedor desses bens ao Brasil, com participação de 38% do total.
Já as exportações de produtos não industriais somaram US$ 27,2 bilhões no primeiro trimestre, com alta de 28% sobre o mesmo período do ano passado. As vendas de baixa intensidade tecnológica somaram US$ 12,5 bilhões (alta de 9%); as de média-baixa intensidade, US$ 7,6 bilhões (queda de 3%); e as de média-alta intensidade, US$ 6,8 bilhões (alta de 5%).
“Quanto mais a gente sobe na intensidade tecnológica, menos o Brasil exporta. Isso coloca um desafio para o país”, afirmou ao jornal o gerente de Políticas de Integração Internacional da CNI, Fabrizio Sardelli Panzini. “A pandemia tem um papel nesse cenário, com certeza, mas a direção já estava dada um pouco antes.”
Na visão da CNI, para aumentar a participação de bens mais complexos nas exportações, o país precisa olhar para agendas estruturais, como a reforma tributária. Em paralelo, deve investir em políticas de comércio internacional que favoreçam a produção industrial, como desburocratização nas aduanas, melhoria no financiamento e acordos para evitar dupla tributação. Esse segmento de produtos, defende a entidade, reflete o investimento em inovação, pesquisa e desenvolvimento da indústria.
Em 5 anos, 36,6 mil empresas desapareceram
Há seis anos consecutivos o Brasil vê cair o número de indústrias. Em 2020, 5,5 mil fábricas encerraram suas atividades. Ao todo, desde 2015, foram extintas 36,6 mil. O equivalente a quase 17 estabelecimentos por dia. Os números são de um levantamento da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC).
Segundo a série histórica iniciada em 2002, até 2014 o número de fábricas crescia, mesmo com a indústria de transformação perdendo relevância na economia diante do avanço dos outros setores. Há seis anos, o país tinha 384,7 mil estabelecimentos industriais. Mas, no fim do ano passado, a estimativa era de que o número tinha caído para 348,1 mil.
“O processo de desindustrialização no Brasil é um fenômeno que já existe há bastante tempo e se acentuou depois da recessão de 2015/2016. A pandemia só escancarou alguns problemas que o país enfrenta”, explica o economista Fabio Bentes, da Divisão Econômica da CNC, responsável pelo estudo.
Ele calcula que a fatia da indústria da transformação no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro desça a 11,2% em 2020. Será o patamar mais baixo da série histórica iniciada em 1946. Para Bentes, o pior problema é a perda acelerada de competitividade.
O desempenho da indústria nacional está hoje 14% abaixo do pico atingido em 2011, quando o superávit comercial do setor chegou a US$ 48,7 bilhões em 2011. Em 2020, o resultado negativo foi de US$ 35,3 bilhões. A fatia brasileira na indústria mundial, que chegou a 2,8% em 2005, recuou para 1,8% no ano passado.
Segundo o economista-chefe do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), Rafael Cagnin, o sistema tributário prejudica a rentabilidade das empresas e a competitividade do produto nacional. Ele também não vê investimento em inovação. “Produtividade é um resultado que é alavancado pela inovação. Precisa ter investimento. A palavra ‘inovação’ não está presente no léxico deste governo”, critica.
Outra urgência é a diversificação do setor. “Precisamos de maior agregação de valor no produto, que vai gerar mais emprego e renda. Isso é sinônimo de industrialização. A gente precisaria agregar valor às exportações agropecuárias. Ao se fazer isso, as cadeias produtivas vão ficando mais longas, gerando mais emprego e maior renda”, explica.
Negligenciada pelo desgoverno Bolsonaro, a indústria fechou 126 mil vagas no trimestre encerrado em fevereiro ante o trimestre terminado em novembro. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), divulgada nessa sexta pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em relação ao patamar de um ano antes, o setor já dispensou 1,319 milhão de funcionários.
Declínio industrial profundo e acelerado
Em entrevista ao ‘El País’, Glauco Arbix, professor de Sociologia da Universidade de São Paulo, afirmou que o processo de desindustrialização vivenciado em 30 anos por nações desenvolvidas como França e Inglaterra, o Brasil experimentou em meia década.
“Isso aumenta a dramaticidade da defasagem que se cria na economia. Ela se esvazia do ponto de vista industrial mais rapidamente, perde capacidade de produzir, os trabalhadores ficam defasados, então você tem todo um processo atabalhoado, que é um dos motivos fortes para a gente pensar na baixa produtividade brasileira”, explicou.
O coordenador do Observatório da Inovação da USP lamenta que o Brasil não tenha mais política pública para o setor. “Inclusive você tem o Carlos da Costa (secretário especial de Produtividade, Emprego e Competitividade) dentro do ministério da Economia, que fala que o Brasil não precisa inovar, que a gente não precisa de tecnologia, que podemos comprar. Acho que ele não sabe o que diz. Ele tem um viés ideológico forte anti indústria que é muito ruim”, critica.
Sobre a emblemática saída da Ford do Brasil, embora tenha componentes de estratégia global, Arbix afirma que foi tomada dentro do contexto de um governo imprevisível. “Um governo que é contra a indústria, que acredita que a indústria brasileira só vive de benefícios, que só quer diminuição de imposto. Você tem uma situação institucional, política e econômica que é adversa. Mas a decisão não foi tomada só por conta disso, porque o mercado brasileiro é grande e não pode ser desprezado”, ponderou.
Ainda na avaliação do professor, as consequências da falta de investimento em inovação são sentidas durante a pandemia. “O governo Bolsonaro não investe na pesquisa, não investe na vacina e não investe na indústria. Você espera e tenta comprar. Somado a incompetência do governo e do ministro da Saúde, você tem uma situação dramática para o Brasil com a covid-19”, enumera. “O que vivemos hoje é um exemplo de como o investimento em inovação e na indústria poderia ter auxiliado nisso.”
A remodelagem de fundo necessária para a indústria nacional se reerguer, defende o professor, só ocorrerá com a participação do Estado. Ele cita como exemplos a indústria 4.0 que nasce na Alemanha em 2011, e os milhões em investimentos do governo Barack Obama em grandes institutos industriais de inteligência artificial, mecatrônica e energia. O oposto da agenda austericida do ministro-banqueiro da Economia, Paulo Guedes.
“A política pública atual é liberal, que diz que as empresas precisam se virar. Mas ignoram que no mundo todo elas não fazem sozinha sem uma cooperação intensa entre público e privado, porque tem um número enorme de questões. Formação, qualificação, educação, custo de energia, segurança, impostos”, descreve Arbix. “O Estado tem obrigação de estar junto. Não é ser mais ou menos estadista.”
Da Redação, com informações de ‘Valor Econômico’, ‘El País’ e agências