Desmonte de banco de dados de assistência social fecha a porta para os pobres
A destruição do SUAS e do Cadúnico já avançava a passos largos, segundo Tereza Campello, ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome no Governo Dilma. “O governo Bolsonaro em 2020 cortou 67% dos recursos de serviços socioassistenciais do SUAS, desidratou os valores repassados aos Estados e Municípios para a gestão do cadastro, e aproveitou o App do Auxílio Emergencial para sucatear o Cadastro e usar um sistema paralelo”, denuncia. ” A gestão Bolsonaro vem negociando com Big Techs, como Google e Facebook, para que se tornem os gestores deste novo sistema/aplicativo desumanizado”, alerta
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A matéria intitulada “Governo quer reduzir papel de municípios para cortar custo do Bolsa Família”, publicada no UOL, na segunda-feira (25), começa a trazer a público o ardiloso processo de destruição do Sistema Único da Assistência Social (SUAS) e do Cadastro Único (Cadúnico). As consequências vão além de dinamitar o pacto federativo organizado em torno dessas duas frentes e interditar os mecanismos de inclusão social da população mais pobre no Brasil.
A destruição do SUAS e do Cadúnico já avançava a passos largos. O governo Bolsonaro em 2020 cortou 67% dos recursos de serviços socioassistenciais do SUAS, desidratou os valores repassados aos Estados e Municípios para a gestão do cadastro, e aproveitou o App do Auxílio Emergencial para sucatear o Cadastro e usar um sistema paralelo.
O argumento de modernizar o Cadúnico, que passaria a uma plataforma digital com autodastramento, é uma confissão do governo. O Cadúnico não é uma plataforma de dados, é uma tecnologia social, reconhecida no mundo todo, e usada como exemplo pelo Banco Mundial e organismos das Nações Unidas. Garante, através do SUAS, uma porta de entrada humanizada e acolhedora para a população mais vulnerável nos 5.570 municípios.
Ao ter acesso ao SUAS estas famílias têm identificadas as suas desproteções e passam a ser orientadas inclusive para outros serviços e direitos, como saúde, educação, oportunidades de qualificação. Mais de 20 programas são acessados via Cadastro Único, inclusive programas estaduais e municipais, que adotam essa base como referência.
O conceito que organizou a ação do Cadastro nestes 17 anos foi o de conhecer para incluir. O oposto dos aplicativos implementados pelo Governo Bolsonaro onde parte da população já é excluída pela falta de acesso à internet, à informação e ao manejo de um modelo construído para uma relação baseada na transferência de recursos e não de cidadania e cuidados. O próprio Bolsa Família está em risco, à medida que passa a ser mera transferência de renda numa relação beneficiário/banco, excluindo as dimensões de acesso a direitos e políticas públicas.
A gestão Bolsonaro vem negociando com Big Techs, como Google e Facebook, para que se tornem os gestores deste novo sistema/aplicativo desumanizado. Colocam assim nas mãos de atores privados, questionados em países como Inglaterra e EUA por terem feito uso de informações privadas, as bases de dados de 114 milhões de brasileiros (este é o conjunto de indivíduos que em algum momento desde 2003 passou pelo Cadastro Único).
O SUAS e o Cadúnico vêm sendo pactuados com governos estaduais e municipais desde 2003. Pactuações foram construídas à cada mudança legal e normativa, a cada nova versão do cadastro, em cada reunião da Comissão Intergestores Tripartite (CIT).
O Ministério da Cidadania vai implodir todo este processo, sem qualquer estudo técnico que dê suporte a interrupção de tão bem sucedida política pública, e apartar Estados e Municípios do processo. Não nos enganemos, o fim do SUAS e do Cadunico acabará com o sistema em bases federativas, mas os problemas continuarão na porta dos prefeitos, sem cofinanciamento e sem corresponsabilidade federal. Voltaremos às filas por cestas básicas e ações pontuais e insustentáveis, pari passu com o aumento da pobreza e da fome, que se apresenta ao país
A matéria do UOL deixa pistas de que o caso é ainda mais grave. No governo Bolsonaro, o Cadastro Único ganhou status de secretaria nacional e passou a ser comandado por uma agente da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) e a Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação (SAGI) do Ministério da Cidadania, por um delegado da Polícia Federal. Tendo técnicos e gestores públicos de qualificação e formação na área social e de Big Data, compatíveis com os mais altos padrões do mundo, por que o Governo Bolsonaro resolve colocar para gerir áreas sensíveis de conhecimento gente do aparato de segurança nacional sem a menor formação para o exercício do cargo?
As informações que circulam entre os gestores são ainda mais assustadoras. A gestão Bolsonaro vem negociando com Big Techs, como Google e Facebook, para que se tornem os gestores deste novo sistema/aplicativo desumanizado. Colocam assim nas mãos de atores privados, questionados em países como Inglaterra e EUA por terem feito uso de informações privadas, as bases de dados de 114 milhões de brasileiros (este é o conjunto de indivíduos que em algum momento desde 2003 passou pelo Cadastro Único).
Sob Bolsonaro vivemos o fim do modelo estabelecido na Constituição Federal de 88 ao tornar inviável o acesso à direitos sociais básicos. A privatização da gestão do banco de dados do Cadúnico torna a população pobre no Brasil ainda mais vulnerável. O país caminha para voltar aos gravíssimos problemas de pobreza e fome do século XX agravados pelos novos desafios da sociedade de vigilância do século XXI.
Tereza Campello é economista, doutora por notório saber em saúde pública, pesquisadora associada à Universidade de Nottingham e ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome no Governo Dilma.
Artigo publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo.