Sob Bolsonaro, endividamento de famílias bate novo recorde
Pesquisa da Confederação Nacional do Comércio revela que 67,1% das famílias brasileiras têm passivos a quitar. O percentual de contas em atraso chegou ao maior nível desde dezembro de 2017. Micro e pequenas empresas ainda sofrem para obter crédito pelo segundo programa do governo destinado ao setor
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A longa crise econômica que o país enfrenta desde que o país tomou o rumo da “ponte para o futuro” do golpismo agrava-se a cada dia, diante do desgoverno do presidente Jair Bolsonaro e seu ministro da Economia, Paulo Guedes. Enquanto se agarram à agenda rentista e afundam o país com um neoliberalismo obsoleto, lançam milhões de famílias brasileiras no abismo do superendividamento.
A Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor, divulgada nesta quinta (18) pela Confederação Nacional do Comércio (CNC), mostra que o percentual de famílias brasileiras com dívidas atingiu em junho 67,1%, o mais alto desde janeiro de 2010.
Outro recorde foi o número de famílias com dívidas ou contas em atraso, que chegou a 25,4% e atingiu o maior nível desde dezembro de 2017, registrando crescimento nos aumentos mensal (+0,3 ponto percentual) e anual (+1,8 ponto percentual).
Já o total de famílias que declararam não ter condições de pagar suas contas ou dívidas em atraso e que, portanto, permaneceriam inadimplentes, chegou a 11,6% – patamar mais alto desde novembro de 2012. O indicador também apresentou aumento mensal (+1 ponto percentual) e anual (2,1 pontos percentuais).
Entre as famílias com renda de até dez salários mínimos (R$ 10.450,00), o porcentual de endividados cresceu de 67,4% para 68,2% entre maio e junho. Já entre as famílias com renda acima de dez salários mínimos, caiu de 61,3% para 60,7% no mesmo período.
O último recorde de famílias com cheque pré-datado, cartão de crédito, cheque especial, carnê de loja, empréstimo pessoal, prestação de carro e seguro foi registrado em abril (66,6%). E em maio, a proporção de famílias com dívidas oscilou levemente para 66,5%, mantendo uma tendência que vem desde o ano passado e se acelerou em 2020.
Em sua Carta de Conjuntura sobre o segundo trimestre deste ano, os pesquisadores do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) apontam que o endividamento das famílias vem crescendo desde o início de 2018. O aumento do comprometimento da renda vem ocorrendo em razão da elevação do endividamento, já que o custo do crédito e a taxa de juros têm apresentado tendência de queda.
Em julho de 2019, a dívida das famílias brasileiras já crescia pelo sexto mês seguido e já era a maior em três anos. O percentual de famílias com dívidas chegou a 64,1% em julho de 2019, 0,1% a mais do que o valor do mês anterior. O aumento também era observado na comparação com julho de 2018, quando o percentual estava em 59,6% do total de famílias.
“No corte por faixa de renda, o endividamento é crescente e segue tendência positiva desde fevereiro de 2020 entre as famílias com menor renda. Já nas famílias que recebem mais de dez salários, o endividamento vem caindo desde abril deste ano”, destaca em nota a economista da CNC responsável pela pesquisa, Izis Ferreira.
A pesquisa é apurada mensalmente pela CNC desde janeiro de 2010. Os dados são coletados em todas as capitais dos estados e no Distrito Federal, com cerca de 18 mil consumidores.
Crédito não chega a micro e pequenas empresas
A pandemia, aliada à inépcia da equipe econômica, atingiu o principal pilar da economia nacional. A exclusão de milhões de pessoas endividadas do mercado de consumo prejudicará uma eventual retomada econômica, uma vez que o consumo das famílias totalizou R$ 4,7 trilhões em 2019, representando 64,9% do Produto Interno Bruto (PIB). E o governo continua mostrando-se incapaz de gerar políticas anticíclicas eficientes para deter a derrocada na base da pirâmide social.
Entre as críticas à equipe econômica, está a demora para operacionalizar o socorro a pequenos empresários. Esses empreendedores dependem de capital de giro e viram o faturamento sumir da noite para o dia por causa das medidas de isolamento social adotadas em meados de março.
A segunda iniciativa do governo para destravar linhas de crédito destinadas a micro, pequenas e médias empresas não decola e poderá fracassar, como a primeira. Embora a Federação dos Bancos do Brasil (Febraban) tenha divulgado balanço com a liberação de quase R$ 1 trilhão, o crédito para essa faixa continua represado nos bancos, que cobram taxas altas, exigem garantias de quem está parado há mais de 60 dias e barram o acesso de quem precisa dos recursos para sobreviver na crise do coronavírus.
O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, reconheceu, em audiência no Senado, que há “um descompasso entre a oferta e a demanda de crédito”. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), frisou em uma rede social que “todos sabem que apenas uma ínfima parte do dinheiro chegou na ponta. A grande maioria dos empreendedores ainda está sem acesso ao dinheiro”.
Até o último dia 10, passados mais de 20 dias da sanção presidencial da segunda iniciativa para o setor, praticamente nenhum centavo dos R$ 15,9 bilhões em crédito especial prometidos para a linha de empréstimo foi liberado para empresas com faturamento anual entre R$ 360 mil e R$ 4,8 milhões. O valor é destinado ao Fundo Garantidor de Operações (FGO) para empréstimos a pequenos negócios no âmbito do programa do governo.
A intenção anunciada pelo governo era de que o crédito poderia atingir 4,5 milhões de micro e pequenas empresas, além de microempreendedores individuais (MEI). E segundo o governo, com garantia de 100% de cada operação até o limite de 85% da carteira de cada agente financeiro. “É praticamente sem risco para as instituições financeiras”, afirmou Carlos da Costa, secretário especial de Produtividade, Emprego e Competitividade do Ministério da Economia.
Mas a Febraban anunciou que “as medidas de crédito que o governo editou com garantia do FGI e do FGO são recentes e ainda dependem de ajustes para atendimento legal das regras estabelecidas nestes programas. A Febraban já iniciou as análises necessárias e há toda disposição do setor bancário em aderir para ajudar o Brasil a preservar empregos e empresas”. Mas a Febraban não informou a partir de quando os bancos vão começar a operar com a linha de crédito.
Bancos não assumem risco, só bônus
Segundo o consultor econômico da Associação Nacional das Instituições de Crédito, Financiamento e Investimento (Acrefi), Nicola Tingas, “em um ambiente de recessão forte, se você não tem condições de mostrar fluxo de caixa futuro e garantias ou condição de mostrar que você vai poder pagar o empréstimo é muito difícil conseguir a concessão de crédito”.
O economista lembra que, para o banco, na análise de risco vai ficar demonstrado que esse perfil é um candidato a se tornar perda. Além disso, como o risco está mais alto, também as taxas de juros ficam mais altas. Com a Selic a 3% ao ano, os bancos chegam a cobrar esse percentual ao mês, o que dá 42,57% ao ano.
“Os bancos não estão dispostos a captar recursos ou buscar do acionista porque ele precisa ser remunerado e ter liquidez. Então, os bancos ficam mais restritivos por uma necessidade de liquidez”, diz a economista-chefe da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg), Daniela de Britto.
Nicola Tingas defende que o governo, assim como ajudou os trabalhadores informais com o auxílio emergencial de R$ 600, crie um mecanismo para ajustar as empresas mais fragilizadas. “Essas modalidades de ajudar aqueles mais vulneráveis, seja pessoa física, seja micro e pequenas empresas que não têm capacidade de tomar o crédito exatamente pelas restrições de que elas mesmas têm, precisam ser o dinheiro público. Ele é que tem que ajudar nesse momento”, afirma o economista.
Daniela de Britto lembra que o Orçamento da União cria dificuldade para uma ajuda direta por causa da definição dos beneficiários e dos valores. “O governo tem muita dúvida, mas, por que não injeta dinheiro nas empresas que precisam? É só fazer uma seleção através das instituições de crédito”, destaca a economista-chefe da Fiemg.
Tanto Daniela quanto Tingas ressaltam que nos Estados Unidos o governo está injetando dinheiro nas pequenas empresas após os bancos não conseguirem fazer o dinheiro liberado pelo Tesouro chegar a elas. Inicialmente, foram liberados US$ 600 bilhões para companhias de pequeno e médio porte. Em abril, foi liberado outro pacote, de US$ 349 bilhões, em empréstimos perdoáveis para micro e pequenas empresas, que só precisam manter a folha de pagamento em dia para usar os recursos sem precisar pagar por eles.
Bolsonaro fecha as mãos para o povo
Na live de quinta (18), Bolsonaro afirmou que a terceira parcela do auxílio emergencial para trabalhadores informais está garantida, mas não sabe qual será o valor de eventuais quarta e quinta parcelas. “O nosso endividamento está enorme”, justificou.
“A cada pagamento são R$ 50 bilhões que nós gastamos. Vale lembrar que um ano de Bolsa Família está na casa dos R$ 35 bilhões. As 13 prestações do Bolsa Família são menores que um mês do auxílio emergencial”.
De fato, a dívida bruta brasileira (que inclui o governo federal, o INSS e os governos estaduais e municipais), em abril, chegou a R$ 5.817,9 bilhões, o equivalente a 79,7% do Produto Interno Bruto (PIB). O percentual é superior ao registrado em março (79,5%) e também é o maior da série histórica iniciada em 2006 pelo Banco Central.
Mas o governo não pestanejou ao anunciar um pacote de ajuda aos bancos de R$ 1,2 trilhão no primeiro dia útil seguinte à ratificação do estado de calamidade pública pelo Congresso Nacional, ocorrido em 20 de março, uma sexta-feira. A lei que criou o auxílio emergencial veio a ser sancionada apenas em 2 de abril.
A justificativa para esse pacote foi justamente o aumento da liquidez dos bancos, a fim de facilitar a concessão de empréstimos a juros baixos para as empresas, para que estas mantivessem empregos e prosseguissem com o pagamento de suas obrigações durante a pandemia.
“No dia 23 de março, os bancos receberam R$ 1,2 trilhão e não cumpriram o combinado”, critica em nota técnica Maria Lúcia Fattorelli, coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da dívida. A economista lembra que o crédito “empoçado” nos bancos é depositado voluntariamente no Banco Central e remunerado diariamente, às custas do orçamento público.
“Mesmo sem amparo legal, atualmente, cerca de R$ 1,3 trilhão que sobram no caixa dos bancos é depositado voluntariamente no Banco Central e remunerado diariamente! É o antigo overnight, às nossas custas. E é ilegal!”, acusa a economista.
“O Banco Central deveria exercer a sua função de autoridade monetária e determinar que os bancos emprestem para as empresas, principalmente às pequenas e médias, a juros próximos de zero e prazo de carência enquanto durar a pandemia, para que estas possam manter empregos e a própria atividade econômica”, aponta Fattorelli.