Exército abandonou transplantados para produzir cloroquina

Único fornecedor de micofenolato de sódio para o SUS, o laboratório da Força passou a reduzir as remessas em março de 2020, quando intensificou a fabricação da panaceia bolsonarista

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Produção de cloroquina em massa

Como se não bastasse a pandemia do coronavírus reduzir o número de doadores de órgãos e tecidos, os doentes que precisam de transplantes sofrem com a falta de micofenolato de sódio 360 mg. Único produtor do remédio no Brasil, o Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército (LQFEX) reduziu em um terço a produção do micofenolato em março de 2020, para iniciar a fabricação de cloroquina em larga escala.

Os imunossupressores baixam a imunidade do organismo para que o corpo não rejeite o órgão transplantado. Os principais são o micofenolato de sódio e o tacrolimo, fabricado pela Fiocruz. Os dois remédios podem ser necessários durante toda a vida do transplantado, e custam de R$ 2 mil a R$ 3 mil por mês.

Segundo reportagem do portal ‘G1’, chega a 80 mil o número de pacientes que passaram por algum transplante de órgão e dependem do remédio fornecido exclusivamente pelo Exército ao Sistema Único de Saúde (SUS). Por meio da Lei de Acesso à Informação, o Exército informou a linha do tempo do descalabro.

Em janeiro e fevereiro de 2020, o LQFEX produziu 5,6 milhões de comprimidos de micofenolato por mês e não produziu cloroquina. Em março, foram produzidos 1,2 milhão de comprimidos de cloroquina e 3,7 milhões do imunossupressor – quase dois milhões a menos que nos dois meses anteriores.

Nos três meses seguintes, a produção de micofenolato seguiu abaixo dos quatro milhões de comprimidos mensais, enquanto a fabricação de cloroquina chegou a 718 mil comprimidos em maio e 1,2 milhão em junho. No final de 2020, o laboratório havia produzido 3,2 milhões de comprimidos de cloroquina, e começou a faltar micofenolato de sódio em pelo menos 14 estados e no Distrito Federal.

A demanda do SUS é de 44 milhões de comprimidos de micofenolato de sódio por ano. Em 2019, o LQFEX entregou ao Ministério da Saúde 42,9 milhões de comprimidos. Em 2020, a produção caiu para 39,1 milhões, quase quatro milhões a menos.

No fim de janeiro deste ano, a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) recebeu ofício do Ministério da Saúde admitindo a falta do medicamento. “A partir do final do ano houve um parcelamento da entrega, de tal forma que já houve falta de imunossupressores como o micofenolato em alguns estados. Outros estão recebendo uma quantidade muito baixa de tacrolimo”, relatou José Huygens, presidente da ABTO.

O médico sanitarista Gonzalo Vecina, ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), defende que a operação seja investigada pela recém-instalada CPI da Covid. “Eu só posso supor que eles não tinham capacidade para produzir tudo ao mesmo tempo. Então fizeram uma escolha”, afirmou.

Na última quarta (5), o relator da CPI, senador Renan Calheiros (MDB-AL), apresentou requerimentos ao Exército e à Fiocruz pedindo informações sobre a produção de cloroquina. Em nota emitida em fevereiro, o Exército disse que seu laboratório é um órgão executor e que “não é da sua competência decidir sobre qualquer ampliação ou redução na produção de medicamentos, bem como discutir sua eficácia ou utilização”.

Bolsonaro mandou e Pazzuello obedeceu

Em 21 de março do ano passado, em reunião com o então ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva, Bolsonaro autorizou o uso do LQFEX para produzir a cloroquina. “Decidimos que os laboratórios químicos e farmacêuticos do Exército devem ampliar imediatamente a produção desse medicamento”, afirmou em vídeo nas redes sociais.

O Exército viabilizou recursos públicos para ampliar a produção dois dias depois da determinação. A aposta num medicamento sem eficácia para Covid-19 contou com o aval do general Edson Leal Pujol, que comandava o Exército naquele momento. Devido a pressão de Bolsonaro, dois ministros da Saúde pediram demissão, ambos médicos.

O dinheiro foi destravado a partir do Departamento-Geral do Pessoal (DGP), quando a unidade era chefiada pelo general Artur Costa Moura. O general Paulo Sérgio de Oliveira assumiu o DGP após as transferências dos recursos. Oliveira depois substituiu Pujol no comando do Exército. Os repasses se repetiram mais duas vezes.

Em maio de 2020, quando o general Eduardo Pazzuello já comandava interinamente o Ministério da Saúde, o LQFEX comprou uma tonelada do ingrediente farmacêutico ativo (IFA) para a produção de cloroquina, por pouco mais de R$ 1,3 milhão. No mesmo mês, o Ministério da Saúde lançou protocolo para atendimento da covid-19 que recomendava o “uso precoce” da cloroquina associada ao vermífugo azitromicina.

A ampliação da produção, sem aval da medicina e sem pareceres técnicos, é investigada pelo Ministério Público Federal (MPF) e pelo Tribunal de Contas da União (TCU). A Procuradoria da República no Distrito Federal também instaurou inquérito civil para investigar o caso. A suspeita é de que houve superfaturamento nas compras do Exército.

Estão sob investigação um total de 18 acordos para compra de cloroquina em pó e outros insumos de fabricação, como papel alumínio e material de impressão, ao custo total de R$ 1.587.549,81. Desse total, segundo dados do portal de compras do governo federal, em torno de 95% foram gastos com 1.414 kg de cloroquina em pó.

A capital do Amazonas, Manaus, foi transformada em laboratório para uso intensivo da cloroquina.

Falta cloroquina para tratar malária entre os yanomami

O desequilíbrio na oferta dos medicamentos fornecidos pelo LQFEX foi criticado por Edson Arakaki, presidente da Associação Brasileira de Transplantados. “Eu falo que é paradoxal, porque aí um outro fato aconteceu em paralelo, e esse outro fato é essa superoferta de medicamentos do chamado kit de tratamento precoce, como a cloroquina e alguns outros. E aí começou a ter um super estoque, um super abastecimento desses medicamentos”, comentou.

O super estoque de cloroquina, no entanto, não tem evitado a falta do medicamento na reserva Yanomami para exatamente o uso indicado pela ciência: o combate à malária. As denúncias de missionários que trabalham com pessoas da etnia foram reveladas em reportagem do ‘Jornal Nacional’ nesta segunda (10).

“Essas aldeias estão abandonadas. Todas elas sem assistência. Não há equipes. A equipe é desfalcada de pessoas. Tem postos de saúde que estão fechados há meses na Terra Yanomami”, afirmou o missionário católico Carlos Zacquini.

“Cloroquina, o remédio para malária, estava contada, o recomentado é que o uso fosse muito restrito, em caso de necessidade. Não havia abundância. Parece que para outras coisas tem, mas para isso não”, prosseguiu.

O líder Dario Kopenawa também fez seu alerta: “Todos os profissionais estão faltando para cuidar dos nossos parentes, por isso, no combate da malária, essa assistência não dá conta. Outras comunidades são fechadas por falta dos profissionais da Terra Yanomami. Esses remédios não são suficientes, por isso tem o dobro de casos nos yanomamis”.

Em 2014, foram registrados quase três mil casos de malária entre os yanomami. Cinco anos depois, perto de 17 mil casos. Segundo a Fiocruz, 80% das crianças da etnia sofrem de desnutrição crônica. Especialistas em saúde afirmam que a presença de garimpeiros na Terra Yanomami é o principal fator para a propagação da malária.

Da Redação

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