Governo desrespeita Constituição e entrega Meio Ambiente para militares e ruralistas

Ministro do Supremo Luís Roberto Barroso lembra que proteção ambiental é um dever constitucional, não “escolha política”. Ele vai julgar ação movida pelo PT e mais três partidos contra a suspensão do Fundo Nacional de Mudanças Climáticas

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Governo não age no combate às queimadas

Poucas horas após o presidente Jair Bolsonaro pronunciar um dos discursos mais afrontosos da história diplomática brasileira, mentindo descaradamente sobre a real responsabilidade de sua gestão pela tragédia sanitária, econômica, social e ambiental do país, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso afirmou que a proteção ambiental “não é uma escolha política, mas um dever constitucional”.

Em contraponto à fala de Bolsonaro na sessão inaugural da 75ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Barroso se estendeu. “Para resolvermos nossos problemas, precisamos fazer diagnósticos corretos e não criar uma realidade imaginária paralela. Há uma mistura de ceticismo com desconhecimento, apesar de a grande maioria dos cientistas afirmarem peremptoriamente que este é um grande problema e ele vem se agravando”, afirmou, a respeito da devastação ecológica brasileira.

O ministro do STF deu as declarações em audiência pública promovida para subsidiar o julgamento de uma ação apresentada por PT, PSOL, PSB e Rede que questiona a suspensão do Fundo Nacional de Mudanças Climáticas. Relator do processo, transformou a oitiva num relato sobre toda a política ambiental. Ao todo, 66 pessoas, entre parlamentares, cientistas, representantes do poder público, sociedade civil e empresários, participaram da audiência, realizada na segunda (21) e terça (22).

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF-708) foi baseada em documentos técnicos compilados pelo Observatório do Clima — rede composta por 50 organizações da sociedade civil. A ADPF aponta que o Fundo Clima estava congelado desde o início do desgoverno Bolsonaro.

O Fundo Clima foi estabelecido em 2009 para financiar ações de mitigação e adaptação com royalties de petróleo e empréstimos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). É um dos principais mecanismos financeiros da política climática brasileira, que permitiriam ao país cumprir a Lei nº 12.187/2009, da Política Nacional sobre Mudança do Clima, além do compromisso brasileiro no Acordo de Paris.

Pesquisadores e ambientalistas denunciaram que o fundo está parado por decisão política do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que simplesmente extinguiu a Secretaria de Mudanças Climáticas do ministério na primeira semana de gestão, em janeiro de 2019. O órgão foi recriado em agosto deste ano, após pressão do setor.

Na audiência, Salles alegou que a ação judicial “perdeu objeto”, porque vários de seus pedidos foram atendidos. Barroso informou que “isso será considerado”. Na verdade, o ministro recriou o conselho gestor do Fundo Clima (depois de extingui-lo, em 2019), elaborou seu plano de investimento, liberou R$ 350 milhões de seu orçamento e formalizou o empenho de outros R$ 238 milhões recentemente, sob pressão, depois que os partidos de oposição foram ao STF, em junho.

O ministro tentou emplacar a versão de que a paralisação das operações ocorreu devido à espera do novo marco legal do saneamento, aprovado pelo Congresso, também em junho. Tentando minimizar a crise das queimadas e do desmatamento, Salles insistiu que o principal problema ambiental brasileiro é o saneamento, e que vai direcionar dinheiro do fundo para projetos sobre o assunto.

Foi desmentido por vários especialistas, segundo os quais as emissões de gases de efeito estufa do setor, oriundas de lixões e aterros sanitários, não passam de 5% das emissões totais do país. Quase 70% das emissões nacionais originam-se é do desmatamento, da degradação florestal e da agropecuária. Além do que, as regras do órgão de financiamento obrigam investimentos em outros oito setores possíveis de aplicação reembolsável, geridos pelo BNDES.

Salles ainda tentou aproveitar a audiência para se defender de outra ação que tramita no STF, desta vez contra a paralisação do Fundo Amazônia. A relatora é a ministra Rosa Weber. Barroso não marcou a data do julgamento, mas indicou que as duas ações devem ser analisadas conjuntamente. O fundo financia atividades de combate ao desmatamento de órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e secretarias estaduais de meio ambiente.

No ano passado, Salles tentou mudar as regras de funcionamento e extinguiu o comitê orientador do Fundo Amazônia sem avisar Noruega e Alemanha, os principais financiadores. Alegou que havia irregularidades em projetos sem apresentar evidências concretas. As medidas geraram uma crise diplomática e a suspensão das operações, congelando mais de R$ 2 bilhões destinados a projetos de conservação. Seguindo o exemplo do chefe, o ministro culpou os noruegueses pelo problema.

Governo optou pela “não política pública”

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), abriu a audiência classificando de inconstitucional a paralisação do Fundo Clima. “Espero que o STF, a partir desse grande trabalho de escuta e reflexão, seja capaz de contribuir com a construção de saídas para esse estado de coisas inconstitucional que atinge as políticas de proteção ao meio ambiente do país”, afirmou.

“A audiência pública constitui uma oportunidade ímpar para debater o desmonte da política ambiental no país. O governo Bolsonaro tem operado uma inação calculada nesse campo. Desestrutura institucionalidades, paralisa aplicação de recursos, atua contra os órgãos ambientais”, apontou Suely Araújo, especialista sênior em Políticas Públicas do Observatório do Clima. “Os problemas envolvendo o Fundo Clima, o Fundo Amazônia e a inexecução orçamentária são elementos de um mesmo quadro: a antipolítica ambiental do governo.”

O consultor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA), Maurício Guetta, reforçou que o governo Bolsonaro engavetou o plano de combate ao desmatamento na Amazônia, criado em 2004, e está gastando muito menos no combate à derrubada da floresta e às queimadas do que governos anteriores.

“O que fica claro é a decisão do atual governo federal pela não política pública, não execução da Constituição Federal, dos deveres fundamentais. É a ação insuficiente, colocando em risco o direito de todos e todas ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”, criticou o ambientalista.

Guetta apresentou uma projeção, feita com base na execução orçamentária do Ibama até 11 de setembro, que mostra que o órgão pode fechar o ano com uma queda de 67% nos gastos efetivos com controle e fiscalização ambiental, de quase R$ 85 milhões para R$ 28,3 milhões, na comparação com 2019. No caso da ação de prevenção e controle de incêndios, a queda pode chegar a 46%, de R$ 36,7 milhões para R$ 19,6 milhões.

A mesma projeção aponta uma queda de quase 52% para a ação de fiscalização ambiental e prevenção e combate a incêndios florestais do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), de R$ 34,6 milhões para R$ 16,6 milhões. Os dados foram coletados no Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (Siop) e os valores de 2019 foram corrigidos usando o índice de inflação IPCA.

Segundo estimativa equivalente, a aplicação de multas por desmatamento, até o fim do ano, pelo Ibama também pode ficar muito abaixo do ano passado: a queda pode chegar a 30%, de 4,3 mil para 2,5 mil. A queda deste ano pode chegar a 59% em relação a 2018.

Outro expositor que não poupou o governo foi o físico Ricardo Galvão, exonerado, no ano passado, da direção do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), após Bolsonaro contestar os dados sobre desmatamento do órgão e acusar o cientista de “estar a serviço de alguma ONG” por divulgá-los.
Militarização atinge o setor

Galvão criticou o processo de militarização que o desgoverno Bolsonaro está promovendo no monitoramento espacial da Amazônia. “O governo está claramente indicando a intenção de controlar as atividades de observação da Terra sob a ótica das aplicações militares”, apontou. Para ele, a medida poderá comprometer a credibilidade, a transparência e a publicidade dos dados sobre desmatamento produzidos pelo Brasil.

Braulio Ferreira de Souza Dias (UnB), ex-secretário-executivo da Convenção da ONU sobre Diversidade Biológica, afirmou que o governo federal vem enfraquecendo os órgãos ambientais nos últimos anos, o que prejudicou as ações de resposta aos grandes desastres ambientais vividos recentemente pelo país.

A líder indígena Sônia Guajajara, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), acusou o governo de agir em favor de quem está destruindo a Amazônia e contra os povos indígenas e a sociedade civil que tentam proteger a floresta.

“O mundo comporta múltiplos pontos de observação e a verdade não tem dono, embora a mentira deliberada tenha”, afirmou o ministro Barroso, ao final da audiência. “Um dos nossos esforços foi o de identificar narrativas que não tenham apoio nos fatos. Essa é uma corte de Justiça e nós trabalhamos com provas, fatos e juízos tão objetivos quanto possível.”

No entendimento do ministro, o Fundo Clima ilustra um conjunto de ações e omissões que pode representar um estado generalizado de inconstitucionalidade. Ele listou o que considerou os principais “fatos consensuais e incontroversos” do evento:

– O desmatamento cresceu em 2019 e ainda mais em 2020;

– Houve redução do número de multas ambientais no atual governo;

– Até a apresentação da ação, o Fundo Clima não tinha plano de
investimentos nem alocação de recursos neste governo;

– Consumidores e empresas internacionais ameaçam boicotar produtos brasileiros pela percepção crítica da política ambiental;

– As emissões brasileiras decorrem principalmente de atividades criminosas, como grilagem, exploração de madeira e desmatamento, ao contrário de outros países, onde elas decorrem do progresso (indústria e consumo);

– Embora o desmatamento da Amazônia Legal chegue quase a 20% do território, o PIB da região continua estagnado em torno de 8% (do PIB nacional) desde os anos 1970, o que demonstra que o desmatamento não gera riquezas para a região.

Ruralistas sustentam Salles, e ele retribui

A reestruturação do Ministério do Meio Ambiente (MMA) foi formalizada na segunda (21), no ‘Diário Oficial da União’. O coronel da Polícia Militar de São Paulo, Fernando Cesar Lorencini, assume a presidência do ICMBio (na ilustração da capa). Ele já atuava interinamente à frente do órgão desde meados de agosto, quando o também coronel da PM Homero de Giorge Cerqueira foi demitido após divergências relativas às queimadas no Pantanal.

A recém-criada Secretaria da Amazônia foi entregue a um nome conhecido da gestão Salles: Joaquim Álvaro Pereira Leite, ex-secretário de florestas e desenvolvimento sustentável, e conhecido por seu envolvimento de décadas com a Sociedade Rural Brasileira (SRB), da qual foi conselheiro durante 23 anos.

A SRB foi uma das entidades que divulgaram nota de apoio a Salles após o episódio da “boiada”, na maldita reunião ministerial de 22 de abril tornada pública pelo STF, quando o ministro defendeu que o governo aproveitasse a pandemia para flexibilizar discretamente regras ambientais sem chamar a atenção do público.

A nomeação de Leite é uma espécie de retribuição de Salles pelo apoio que sempre recebe da bancada ruralista na Câmara dos Deputados, que reúne 236 dos 513 deputados, incluindo o presidente da Casa, Rodrigo Maia. Responsável pela indicação da titular da Agricultura, Tereza Cristina, o líder da frente, Alceu Moreira (MDB-RS), avalia Salles como “um dos ministros mais qualificados do governo”.

Fora da bolha agro, no entanto, Salles não se sustenta. Até o prefeito de Manaus, Arthur Virgílio (PSDB), pediu sua demissão em uma conferência com representantes de governos da Pan-Amazônia, na terça. “Uma medida de boa vontade que ele [Bolsonaro] poderia dar é demitir imediatamente aquela figura nociva, que gastou 1% de seu orçamento em preservação, que é o ministro Ricardo Salles. Ele é um estorvo a qualquer tentativa de se mudar a política nefasta ambiental que hoje é praticada, oficialmente, pelo governo brasileiro”, disse.

 

Da Redação

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