“Uma vez me perguntaram se o Estado brasileiro é muito grande. Respondi assim: “Eu vou lhe dar o telefone da minha empregada, porque você está perguntando isto para mim, um…
Publicado em
“Uma vez me perguntaram se o Estado brasileiro é muito grande. Respondi assim: “Eu vou lhe dar o telefone da minha empregada, porque você está perguntando isto para mim, um cara que fez pós-doutorado, trabalha num lugar com ar-condicionado, com vista para o Cristo Redentor. Eu não dependo em nada do Estado, com exceção de segurança. Nesse condomínio social, eu moro na cobertura. Você tem que perguntar a quem precisa do Estado”.
Luiz G. Schymura, “Não foi por decisão de Dilma que o gasto cresceu”, Valor, 07/08/2015
Duas coisas ficaram mais claras nas últimas semanas, com relação à tal da “crise brasileira”. De um lado, o despudor golpista, e de outro, a natureza ultraliberal do seu projeto para o Brasil. Do ponto de vista político, ficou claro que dá absolutamente no mesmo o motivo dos que propõem um impeachment, o fundamental é sua decisão prévia de derrubar uma presidente da República eleita por 54,5 milhões de brasileiros, há menos de um ano, o que caracteriza um projeto claramente golpista e antidemocrático, e o que pior, conduzido por lideranças medíocres e de discutível estatura moral.
Talvez, por isto mesmo, nas últimas semanas, a imprensa escalou um grupo expressivo de economistas liberais para formular as ideias e projetos do que seria o governo nascido do golpe. Sem nenhuma surpresa: quase todos repetem as mesmas fórmulas, com distintas linguagens. Todos consideram que é preciso primeiro resolver a “crise política”, para depois poder resolver a “crise econômica”; e uma vez “resolvida” a crise política, todos propõem a mesma coisa, em síntese: “menos Estado e menos política”.
Não interessa muito o detalhamento aqui das suas sugestões técnicas. O que importa é que suas premissas e conclusões são as mesmas que a utopia liberal repete desde o século XVIII, sem jamais alcançá-las ou comprová-las, como é o caso de sua crença econômica no “individualismo eficiente”, na superioridade dos “mercados desregulados”, na existência de mercados “competitivos globais”, e na sua fé cega na necessidade e possibilidade de despolitizar e reduzir ao mínimo a intervenção do Estado na vida econômica
É muito difícil para estes ideólogos que sonham com o “limbo” entender que não existe vida econômica sem política e sem Estado. É muito difícil para eles compreender ou aceitar que as duas “crises brasileiras” são duas faces de um conjunto de conflitos e disputas econômicas cruzadas cuja solução tem que passar inevitavelmente pela política e pelo Estado.
Não se trata de uma disputa que possa ser resolvida através de uma fórmula técnica de validez universal. Por isto, é uma falácia dizer que existe uma luta e uma incompatibilidade entre a “aritmética econômica” e o “voluntarismo político”. Existem várias “aritméticas econômicas” para explicar um mesmo déficit fiscal, por exemplo, todas só parcialmente verdadeiras. Parece muito difícil para os economistas em geral, e em particular para os economistas liberais, aceitarem que a economia envolve relações sociais de poder, que a economia é também uma estratégia de luta pelo poder do Estado, que pode estar mais voltado para o “pessoal da cobertura”, mas também pode ser inclinado na direção dos menos favorecidos pelas alturas.
Agora bem, na conjuntura atual, como entender o encontro e a colaboração destes economistas liberais com os políticos golpistas?
O francês Pierre Rosanvallon dá uma pista, ao fazer uma anátomo-patologia lógica do liberalismo da “escola fisiocrática” francesa, liderada por François Quesnay. Ela parte da proposta fisiocrático-liberal de redução radical da politica à economia e da transformação de todos os governos em máquinas puramente administrativas e despolitizadas, fiéis à ordem natural dos mercados. E mostra como e por que este projeto de despolitização radical da economia e do Estado leva à necessidade implacável de um “tirano” ou “déspota esclarecido” que entenda a natureza nefasta da política e do Estado, se mantenha “neutro”, e promova a supressão despótica da política, criando as condições indispensáveis para a realização da “grande utopia liberal”, dos mercados livres e desregulados.
Foi o que Rosanvallon chamou de “paradoxo fisiocrata”, ou seja: a defesa da necessidade de um “tirano liberal”, que “adormecesse” as paixões e os interesses políticos, e se possível, os eliminasse
No século XX, a experiência mais conhecida deste projeto ultraliberal foi a da ditadura do Sr. Augusto Pinochet, no Chile, que foi chamada pelo economista americano Paul Samuelson de “fascismo de mercado”. Pinochet foi por excelência a figura do “tirano” sonhado pelos fisiocratas: primitivo, quase troglodita, dedicou-se quase inteiramente à eliminação dos seus adversários e de toda a atividade politica dissidente, e entregou o governo de fato a um grupo de economistas ultraliberais que puderam fazer o que quiseram durante quase duas décadas.
No Brasil não faltam neste momento os candidatos com as mesmas características e os economistas sempre rápidos em propor e dispostos a levar até as últimas consequências o seu projeto de “redução radical do Estado”, e se for possível, de toda atividade política capaz de perturbar a tranquilidade de sua “aritmética econômica”.
Neste sentido, não está errado dizer que os dois lados deste mesmo projeto são cúmplices e compartem a mesma e gigantesca insensatez, ao supor que seu projeto golpista e ultraliberal não encontrará resistência, e no limite, não provocará uma rebelião ou enfrentamento civil, de grandes proporções, como nunca houve antes no Brasil.
Porque não é necessário dizer que tanto os líderes golpistas quanto seus economistas de plantão olham para o mundo como se ele fosse uma “enorme cobertura”, segundo a tipologia sugerida na epígrafe, pelo Sr. Luiz Schymura. Um raro economista liberal, em entender a natureza contraditória dos mercados, e natureza democrática do atual déficit público brasileiro.
1) P. Rosanvallon, Le liberalisme économique. Histoire de l’idée de marché, Editions Seuil, Paris, 1988
(Artigo inicialmente publicado no jornal ‘Valor Econômico’, no dia 26 de setembro de 2015)
José Luís Fiori éprofessor titular de economia política internacional da UFRJ, é autor do livro “História, estratégia e desenvolvimento” (2014) da Editora Boitempo, e coordenador do grupo de pesquisa do CNPQ/UFRJ
Utilizamos cookies essenciais e tecnologias semelhantes de acordo com a nossa Política de Privacidade e, ao continuar navegando, você concorda com estas condições.
This website uses cookies to improve your experience while you navigate through the website. Out of these, the cookies that are categorized as necessary are stored on your browser as they are essential for the working of basic functionalities of the website. We also use third-party cookies that help us analyze and understand how you use this website. These cookies will be stored in your browser only with your consent. You also have the option to opt-out of these cookies. But opting out of some of these cookies may affect your browsing experience.
Necessary cookies are absolutely essential for the website to function properly. These cookies ensure basic functionalities and security features of the website, anonymously.
Cookie
Duration
Description
cookielawinfo-checbox-analytics
11 months
This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Analytics".
cookielawinfo-checbox-functional
11 months
The cookie is set by GDPR cookie consent to record the user consent for the cookies in the category "Functional".
cookielawinfo-checbox-others
11 months
This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Other.
cookielawinfo-checkbox-necessary
11 months
This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookies is used to store the user consent for the cookies in the category "Necessary".
cookielawinfo-checkbox-performance
11 months
This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Performance".
viewed_cookie_policy
11 months
The cookie is set by the GDPR Cookie Consent plugin and is used to store whether or not user has consented to the use of cookies. It does not store any personal data.
Functional cookies help to perform certain functionalities like sharing the content of the website on social media platforms, collect feedbacks, and other third-party features.
Performance cookies are used to understand and analyze the key performance indexes of the website which helps in delivering a better user experience for the visitors.
Analytical cookies are used to understand how visitors interact with the website. These cookies help provide information on metrics the number of visitors, bounce rate, traffic source, etc.
Advertisement cookies are used to provide visitors with relevant ads and marketing campaigns. These cookies track visitors across websites and collect information to provide customized ads.