Lula e o sequestro da voz

Talvez possamos enxergar que no fundo do poço da insegurança jurídica haja de fato uma mola que impulsione o retorno ao respeito às leis e à Constituição

Juca Varella

“No fundo poço tem uma mola”.

O provérbio popular usado para falar da ausência de limites pode perfeitamente ser utilizado para ponderar nossa crença na seriedade do Poder Judiciário na atual quadra histórica brasileira. Isso porque a cada dia são proferidas decisões que antes não se supunham possíveis, ilegais, inconstitucionais e recheadas de conteúdo exclusivamente político. Membros da sociedade, mesmo os que são do mundo jurídico, assistem abismados como o devido processo legal constitucional, que deveria ser lido como garantia que incorpora não apenas o critério formal de observância de regras e procedimentos, mas também o sentido de garantir a participação equilibrada, justa, leal e sempre envolvida pela boa-fé de todos os sujeitos do processo, é afetado por decisões surpresas, incompreensíveis, que violam frontalmente o princípio da segurança jurídica.

Reclamação constitucional é uma ação ajuizada quando uma parte entende que um juiz ou tribunal descumpre uma decisão do Supremo Tribunal Federal e para garantir a autoridade das decisões do tribunal (artigos 102, inciso I, alínea “l”, e 103 da Constituição Federal e artigo 9º, inciso I, alínea “c” do Regimento Interno do STF).

Ao analisar duas reclamações constitucionais contra decisão da Vara de Execuções Penais de Curitiba, o ministro Ricardo Lewandoski deferiu, na sexta-feira (28) liminares para afirmar que aquela Corte garante a liberdade plena de imprensa, o que ficou consignado no julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 130/DF, autorizando, desse modo, que o ex-presidente Lula concedesse entrevista na prisão à colunista da Folha de S. Paulo Mônica Bergamo e ao jornalista Florestan Fernandes Júnior, os reclamantes.

Salientou o ministro na decisão que “não raro, diversos meios de comunicação entrevistam presos por todo o país, sem que isso acarrete problemas maiores ao sistema carcerário”

Ocorre que, no mesmo dia, o ministro Luiz Fux, vice-presidente no exercício da presidência, deu decisão suspendendo a liminar do colega em pedido ajuizado pelo Partido Novo.

A inusitada decisão do ministro Fux causa diversas estranhezas e irregularidades processuais. A primeira delas porque o entendimento do Supremo Tribunal Federal, em sua pacífica jurisprudência, é de que não há que se falar em competência do Presidente do Tribunal para suspender as decisões monocráticas de autoria dos demais membros da Corte, por ser cabível agravo regimental contra a decisão liminar, que é o recurso próprio interno e que é submetido ao colegiado.

A outra questão é que o art. 4º da Lei nº 8.437/1992 – a norma adotada para a suspensão da execução de medida liminar contra o poder público – é claríssimo ao definir que a competência para ajuizar o pedido é do Ministério Público ou de pessoa jurídica de direito público interessada. Partidos políticos, portanto, não se inserem nessa categoria, por serem entidades de direito privado.

Não por acaso, sabedores desse impedimento, os patrocinadores do pedido de suspensão pelo Partido Novo usaram algumas páginas da petição para justificarem-se como legítimos:

“Durante o processo eleitoral, os partidos políticos, as coligações, os candidatos e o Ministério Público assumem o monopólio de questionamento da quebra de legitimidade do pleito. Não é sem razão que apenas esses passam a ser legitimados para propositura de ações eleitorais“

Ocorre que o argumento em nada ajuda a ilegalidade e ilegitimidade da parte autora para a ação, haja vista que a causa não versa sobre matéria eleitoral, mas sobre tema eminentemente constitucional, donde se extrai que o processo eleitoral não pode ser invocado para conferir uma competência ativa que a rigor não existe. O argumento é, portanto, vazio e a peça deveria ter tido seguimento negado sem qualquer análise de seu conteúdo, ante a ilegitimidade de parte ativa para pleitear a suspensão.

Fosse esse um ensaio ingênuo, poderia questionar sobre que tipo de interesse uma agremiação partidária poderia ter na entrevista de um cidadão preso, não sendo ele candidato, mesmo sendo um dirigente partidário. A questão é que esse cidadão se chama Luiz Inácio Lula da Silva e se não há interesse legítimo do Partido Novo na ação junto ao STF no aspecto jurídico formal, certamente há interesse político em calar-lhe, subtrair-lhe o direito de cidadania à fala. Porque ele é uma voz que a população ouve e tem interesse em ouvir. Sequestrar sua voz é tudo que podem buscar os que não toleram o respeito às divergências e o espaço da democracia no debate plural.

Por outro lado, o ministro Luiz Fux, que já foi autor de curiosos neologismos como “irregistrável” para referir-se ao ex-presidente Lula ao tempo em que dirigia o Tribunal Superior Eleitoral – TSE nos obriga, como sociedade, a questionar seus motivos e seus princípios, colocando sua imparcialidade sob suspeita. Isso porque ao afrontar a jurisprudência da Corte, suspendendo a liminar de um colega, aceitando a legitimidade ativa de parte ilegítima, ele subverte a ordem do devido processo legal constitucional, atua como agente político, não jurídico.

Mais, nos impele a acompanhar o comportamento do presidente de fato e de direito do Tribunal, Dias Toffoli, a quem incumbe chamar o feito à ordem e restabelecer a competência do ministro Ricardo Lewandowski, anulando decisão ilegítima e ilegal. Desse modo, talvez possamos enxergar que no fundo do poço da insegurança jurídica, cavado por decisões teratológicas, haja de fato uma mola que impulsione o caminho para cima, de volta para o respeito às leis e à Constituição.

Por Tânia Oliveira, do PT na Câmara

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