Mais fome: governo esvazia orçamento para cisternas

Temer e Bolsonaro desmontaram programa do PT que beneficiou cinco milhões de pessoas. Sem água para produção de alimento, fome volta a assolar o semiárido

O esvaziamento do Programa 1 Milhão de Cisternas (P1MC), que em 13 anos de governos do PT beneficiou 5 milhões de pessoas com 1,3 milhão de reservatórios, agrava os danos da atual estiagem no semiárido. A situação foi mencionada no documento Carta de Brasília, emitido na última semana pela Câmara Técnica da Agricultura Familiar do Consórcio Nordeste, que deplorou o desmonte promovido pelos governos pós-golpe.

Criada em 2003, por Luiz Inácio Lula da Silva, e reestruturada em 2013, por Dilma Rousseff, a política pública se fundamentou em matriz desenvolvida e multiplicada pela Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA). O sucesso em promover o acesso à água para o consumo humano e para a produção de alimentos em domicílios de baixa renda e escolas públicas da zona rural fez do programa referência internacional.

Hoje, a ASA, que congrega mais de 3 mil entidades da região, vai à imprensa denunciar o pior desempenho desde 2003. Mesmo com orçamento já irrisório de R$ 32 milhões, neste ano, o desgoverno Bolsonaro não desembolsou um centavo sequer para o P1MC. Até a última semana, foram empenhados (reservados) apenas R$ 496.447, ou 1,5% da dotação orçamentária, decorrentes de emendas parlamentares.

Responsável atualmente pelo programa, o Ministério da Cidadania afirmou para o jornal Valor Econômico que a pandemia fez subir o preço do material de construção, e por isso projeta a entrega de apenas 6 mil cisternas ainda(!) em 2021. Mesmo se a promessa for cumprida, é menos que os 6.610 reservatórios instalados em 2003, quando o programa ainda se estruturava a partir de um orçamento elaborado no exercício anterior.

De janeiro a agosto deste ano, foram concluídos 1.632 depósitos de água para consumo humano, 354 para produção de alimentos e 57 em escolas. Em 2020, foram entregues 8.310 – queda de 73% em relação a 2019, quando foram construídos 30.583 reservatórios. O índice de redução chega a 94,5% em comparação com 2014, quando o Governo Dilma bateu o recorde de 149 mil cisternas instaladas.

Após o salto de recursos e obras registrado entre 2011-2014, o golpe de 2016 fez orçamento e entregas despencarem. Em 2014, por exemplo, Dilma investiu R$ 643 milhões. Já o desgoverno Bolsonaro previu R$ 183 milhões para o quadriênio (2020-23), uma média de R$ 45,7 milhões ao ano. Mas na prática, nem isso consegue executar – e investe-se cada menos.

Os volumes entregues em 2016-2017 se referiram a projetos em andamento, iniciados durante o Governo Dilma. A partir de 2018, sob o usurpador Michel Temer e Jair Bolsonaro, os piores resultados da série histórica vem ocorrendo em sequência. E como em 2020, a verba destinada em 2021 é proveniente de anos fiscais anteriores.

O déficit atual, afirmam os dirigentes da ASA, é de 350 mil cisternas, o que demandaria R$ 1,25 bilhão. Cada cisterna de placa de concreto tem custo aproximado de R$ 3,8 mil e capacidade de armazenar até 16 mil litros de água (da chuva ou de caminhões-pipa).

Em vez de diálogo, a volta da fome

“Historicamente, o semiárido é conhecido como a região da seca, da morte, das incapacidades. Nos últimos anos temos apresentado outra perspectiva, de convivência com o semiárido”, lembra Cícero Felix, coordenador da ASA. “No entanto, após a saída da Dilma Rousseff os orçamentos para construção de cisternas foram reduzidos drasticamente, e isso tem provocado fome e sede no semiárido.”

Alexandre Henrique Pires, da coordenação-executiva, diz que falta diálogo com o desgoverno Bolsonaro. “Não temos mais nenhum interlocutor dentro do ministério sobre o programa de cisternas. É uma situação bastante delicada. O fato de o governo ter um orçamento previsto e não executar nada é uma demonstração de que não existe interesse na manutenção de um programa de envergadura social como este”, observa.

“A gente está falando de uma tecnologia social. Então, tem o envolvimento comunitário, o controle social de uso dos recursos”, prossegue o dirigente. “A gente está falando de organizações que têm uma capilaridade e conhecem as comunidades e as regiões. A gente está falando de famílias que, muitas vezes, o Estado nunca chegou a elas.”

“A gente vê progressivamente uma realidade muito grave voltar para o semiárido: a realidade da fome. São políticas de desenvolvimento que garantem segurança hídrica e alimentar para as famílias. No momento em que retira isso, a gente percebe que a fome volta, principalmente para comunidades mais vulneráveis, que estão dispersas”, afirma Valquíria Lima, coordenadora executiva da ASA em Minas Gerais.

Monitoramento feito entre 2013 e 2017 pelo Laboratório de Análise e Processamento de Imagens e Satélites (Lapis), ligado à Universidade Federal de Alagoas (Ufal), aponta que 12,85% do semiárido brasileiro passa por um processo de desertificação.

“Reduzir recursos significa colocar a população mais afetada dessa região em risco frente aos impactos ambientais que pode sofrer com as secas. Você tem uma redução do regime de chuvas nos últimos anos e essa redução pode ocasionar um aprofundamento da crise hídrica”, afirma Pires. “É fundamental que a gente amplie investimentos para que a população tenha condição de armazenar mais água, mais sementes e alimentos pra conseguir enfrentar esses contextos climáticos mais severos.”

Os dirigentes da ASA ressaltam que o desmonte promovido pelo desgoverno Bolsonaro faz com que um programa público afete outro. A produção agrícola permite às famílias acessar iniciativas de compra institucional, em especial o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).

“No semiárido a base de tudo é a água. Na medida que você democratiza o acesso à água, você interfere em todo o ciclo de qualidade de vida das famílias. Não só na segurança alimentar, mas nos aspectos de saúde, qualidade de vida das mulheres, que carregavam latas d’água na cabeça para abastecer suas famílias com água, muitas vezes, imprópria”, aponta Valquíria Lima, coordenadora executiva da ASA em Minas Gerais.

“A gente vê progressivamente uma realidade muito grave voltar para o semiárido: a realidade da fome. São políticas de desenvolvimento que garantem segurança hídrica e alimentar para as famílias. No momento em que retira isso, a gente percebe que a fome volta, principalmente para comunidades mais vulneráveis, que estão dispersas”, finaliza.

Desde o final de setembro, a ASA promove a campanha “Tenho Sede”, para garantir a construção de 1 milhão de cisternas no semiárido. A campanha é realizada em parceria com o Consórcio Nordeste. As doações estão disponíveis na página da campanha.

Em apoio à campanha, Gilberto Gil lançou uma nova versão da canção clássica criada em 1976 por Dominguinhos e Anastácia. “Para milhões de famílias do semiárido, ter uma cisterna é a única forma de ter acesso à água para beber e plantar”, diz no vídeo de divulgação da campanha.

Programa Cisternas foi estratégico para o combate à fome

O semiárido abrange 1.262 municípios brasileiros nos nove estados do Nordeste e em parte de Minas. Na região vivem 27 milhões de pessoas, ou 12% da população brasileira. Nela encontram-se cerca de 80% das comunidades quilombolas brasileiras.

Criado dentro do escopo do Programa Fome Zero, como o Bolsa Família, o Programa Cisternas foi um passo fundamental para que o Brasil deixasse, em 2014, o Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).

Nos 13 anos de governos Lula e Dilma, foram entregues 1.257.670 cisternas para consumo; 169.537 cisternas para produção de alimentos e criação animal e mais 6,9 mil cisternas escolares. Ainda há uma demanda estimada de 1,3 milhão de famílias sem acesso regular à água no meio rural, das quais 600 mil no semiárido.

A equipe do Grupo de Avaliação de Políticas Públicas e Economia, do Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal de Pernambuco (GAPPE/ PIME/ UFPE), examinou os efeitos da expansão de acesso à água potável sobre os indicadores de mortalidade infantil no semiárido entre 2000 e 2010.

O estudo aponta uma redução de 19% das mortes onde o programa tinha dois anos de atuação, e de 69% nas localidades onde o tempo de atuação era de nove anos, em comparação a 2000. O resultado foi mais forte nos municípios com maior proporção de população rural e maior expectativa de anos de estudo, além de ser crescente em relação ao número de cisternas instaladas na localidade.

Nos 13 anos de governos Lula e Dilma, foram entregues 1.257.670 cisternas para consumo; 169.537 cisternas para produção de alimentos e criação animal e mais 6,9 mil cisternas escolares. Ainda há uma demanda estimada de 1,3 milhão de famílias sem acesso regular à água no meio rural, das quais 600 mil no semiárido.

“A melhor comida que vem para a nossa mesa é a comida que vem da agricultura familiar”, afirma Rafael Neves, da coordenação da ASA. “O P1MC já chegou a mais de 350 mil famílias, com a capacidade de produzir em seu quintal e melhorar a qualidade de alimentos da própria mesa e, muitas vezes, tendo o excedente de levar para a feira, para vender e gerar renda para a família.”

Segundo o dirigente, as cisternas são uma forma sustentável de se manter a água no semiárido, porque não causam impacto nos mananciais. “São milhares de famílias que, além de uma cisterna para o consumo humano, têm uma cisterna para a produção de alimento. A quantidade de feiras agroecológicas que passou a ter no semiárido nos últimos dez anos é incrível”, constata.

Por seus resultados, o P1MC recebeu, entre outros, o “Prêmio Sementes 2009”, da Organização das Nações Unidas (ONU), concedido a projetos de países em desenvolvimento feitos em parceria com organizações não-governamentais, comunidades e governos. Também recebeu o “Future Policy Award”, concedido pelo Comitê de Combate à Desertificação da ONU, em parceria com o World Future Council, em reconhecimento a uma das melhores políticas do mundo sobre o tema.

“É bom frisar, que só a partir dos anos 2000, e eu quero enfatizar 2003 como marco na história do semiárido brasileiro, porque até antes água – água é direito – sempre estava destinada às grandes propriedades, ao latifúndio, era pra lá que iam os investimentos públicos, para as grandes propriedades, para os fazendeiros”, disse ao Brasil de Fato Glória Batista, integrante da coordenação-executiva da entidade.

“A conjuntura política é muito ruim, e também vivemos uma crise sanitária. O governo que deveria agir em favor da população, em defesa da sociedade, é um governo que exclui, que exclui a maioria da sociedade, e isso traz como consequência a pobreza”, finaliza a dirigente.

Da Redação, com informações do Brasil de Fato e da revista O partido que mudou o Brasil.

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