Maradona, a realização de uma profecia que encantou a Argentina e o mundo
Em artigo publicado no jornal inglês The Guardian, Jonathan Wilson diz que o craque da bola Diego Armando Maradona foi abençoado com um talento sublime desenvolvido nas favelas de Buenos Aires. “O ‘cabecito negro’ se tornou tudo que definiu os princípios do futebol argentino”, observa
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Jonathan Wilson | The Guardian
Na década de 1920, quando a Argentina, uma nação imigrante em expansão, buscou um senso de identidade, tornou-se evidente que o futebol era uma das poucas coisas que unia sua população tão diferente. Independentemente do seu histórico, você queria que o time com camisetas listradas de azul e branco vencesse – e isso significava que a forma como a seleção nacional jogava tinha um significado político e cultural.
O debate se desenrolou nas páginas do ‘El Gráfico’ e surgiu o consenso de que o futebol argentino se opôs ao jogo dos ingleses, pois a potência quase colonial já havia partido no início da 1ª Guerra Mundial. Nos vastos campos gramados das escolas britânicas, o futebol era sobre força, corrida e energia. O argentino, ao contrário, aprendia o jogo nos potreros, nos terrenos baldios das favelas, em campos pequenos, difíceis e apinhados de gente onde não havia professor para intervir se ficasse muito difícil; seu jogo era sobre sabedoria da rua, justa, habilidade técnica – e astúcia.
Se uma estátua fosse erguida para a alma do jogo argentino, escreveu Borocotó, editor do ‘El Gráfico’, em 1928, ela representaria “um pibe [menino] com o rosto sujo, uma juba de cabelo rebelando-se contra o pente; com olhos inteligentes, errantes, malandros e persuasivos e um olhar cintilante que parece sugerir uma risada picaresca que não consegue se formar na boca, cheia de dentinhos que podem se desgastar por comer o pão de ontem”.
“Suas calças são alguns remendos costurados grosseiramente; o colete com riscas argentinas, de gola muito baixa e com muitos buracos roídos pelos invisíveis ratos do uso… Os joelhos cobertos com as crostas de feridas desinfectadas pelo destino; descalço ou com sapatos cujos buracos nos dedos sugerem que foram feitos por muito tiro. Sua postura deve ser característica; deve parecer que ele está driblando com uma bola de pano”.
Pouco menos de meio século depois, Diego Maradona fez sua estreia internacional. Mesmo aos 16 anos, ele não era apenas um grande jogador de futebol. Era o cumprimento da profecia.
Maradona, que morreu aos 60 anos, era filho de “potreros”. Ele se descreveu como um “cabecito negro” – um pequeno cravo, termo usado por Eva Perón para designar aqueles de ascendência mista italiana e indígena que ela via como seu eleitorado natural. Os pais de Maradona eram peronistas devotos e tinham fotos de Evita e Juan Perón na parede de casa.
Seu pai era barqueiro no delta do Paraná, na província de Corrientes, extremo nordeste do país, e se mudou para Buenos Aires para se juntar à esposa, que morava com parentes e arranjou trabalho como doméstica. Quando os parentes se mudaram, seu pai teve que construir sua própria casa com tijolos soltos e chapas de metal em Villa Fiorito, uma favela tão violenta que a polícia entrava todos os dias por ser considerado perigoso demais manter uma presença permanente.
Uma noite, ainda criança, Maradona caiu em uma fossa aberta. “Dieguito”, gritou seu tio Cirilo enquanto o ajudava, “mantenha a cabeça acima dessa merda”. Era uma frase que Maradona repetia como um mantra nos momentos mais difíceis de sua vida.
Crescendo sem eletricidade e sem água corrente, Maradona ganhou dinheiro como pôde – abrindo portas de táxi, vendendo sucata, recolhendo a embalagem de papel alumínio de maços de cigarro. No caminho para a escola, ele fazia embaixadinha com uma laranja, um jornal amassado ou um monte de trapos, não deixando a bola tocar o chão, mesmo quando ele passava por uma ponte ferroviária.
Uma das primeiras fotos mostra-o, talvez com quatro ou cinco anos, parado na frente de uma cerca de arame amassada e retorcida pela frequência com que ele batia uma bola nela. Essa era exatamente a educação futebolística que Borocotó exigia.
Tão talentoso era Maradona que, quando foi pela primeira vez ao lado juvenil do Argentinos Juniors, Los Cebollitas, para um julgamento, eles pensaram que ele devia ser mais velho do que os 8 anos que dizia ter, pois estava desnutrido.
Quando uma verificação de sua carteira de identidade os convenceu, eles o enviaram a um médico que o prescreveu para tomar pílulas e injeções para fortalecê-lo. Quase imediatamente, ele se tornou um fenômeno, entretendo a multidão no intervalo dos jogos da liga com truques com a bola. Aos 11 anos começou a ser mencionado na imprensa nacional. Expectativa e familiaridade com o aprimoramento farmacêutico estavam lá desde o início.
O mesmo acontecia com a tendência de se entregar a Maradona. Logo ficou claro que as regras não se aplicavam a ele. Seu diretor deu a ele uma nota de aprovação nos exames que ele falhou. Ele era um péssimo perdedor, sempre encontrando outros para culpar. Ele era imaturo e irresponsável, e trabalhava constantemente sob as demandas dos fãs, da mídia e de seu clube. Depois de se mudar para o Boca Juniors em 1981, os problemas financeiros do clube fizeram com que ele tivesse que jogar em uma série interminável de amistosos para ganhar dinheiro. Ele tomou mais injeções para ajudar a lidar com a tensão. A pressão tornou-se insuportável.
Seu consumo de cocaína começou no Barcelona, onde nunca se encaixou. Ele estava mais feliz no Napoli, onde era o foco, e os inspirou a dois títulos da liga e a uma Copa da Uefa, mas mesmo aquele período foi turbulento, suas performances tendo como pano de fundo de rumores sobre seu uso de drogas, suas festas e suas relações com a Camorra.
As regras continuavam sendo algo a ser contornado, dentro e fora do campo. Sua mão na bola contra a Inglaterra em 1986 foi o primeiro de três jogos de alto nível: ele ganhou um pênalti depois de lidar com a final da Copa da Uefa de 1989 e limpou a linha com a mão contra a URSS na Copa do Mundo de 1990. Ele evitou os testadores de drogas usando um pênis de plástico e uma bexiga falsa cheia de urina de outra pessoa. Seus assuntos tributários permaneceram controversos por décadas depois que ele deixou a Itália.
Eventualmente, em março de 1991, Maradona testou positivo para cocaína. Ele foi banido por 15 meses, engordou e caiu à deriva. Houve períodos insatisfatórios com Sevilla e Newell’s Old Boys. Quando jornalistas acamparam do lado de fora de sua casa, seus amigos atiraram neles com rifles de ar comprimido. Mesmo assim, quando Maradona disse que jogaria a Copa do Mundo de 1994, ele foi bem-vindo.
Ele não era um jogador de futebol a ser tratado pelos padrões comuns. Ele não era apenas um gênio, mas alguém que veio envolto em uma importância simbólica. Em toda a sua carreira, ele foi ótimo por talvez quatro temporadas. Não havia nada nele sobre a implacabilidade de Lionel Messi; seu brilho foi derivado de uma luta interna óbvia.
Seu desempenho em 1986 continua sendo o melhor de qualquer indivíduo em uma Copa do Mundo. Ele não se limitou a fazer gols, não apenas a fazer gols brilhantes, mas a fazer gols brilhantes com gambetas, o drible característico do ‘pibe’. Ele viera dos potreros, ainda jogava o jogo dos potreros e, ao fazer isso, ganhou uma Copa do Mundo; melhor ainda, ele tinha feito isso contra a Inglaterra.
Maradona continuou sendo uma figura quase messiânica. No início da década de 1990, seus pronunciamentos sobre uma variedade de assuntos foram recebidos com extraordinária reverência. Em sua capacidade de falar a todas as partes do país, ele se comparou a Perón. Ele foi creditado com poderes muito além dos de qualquer mortal. Por isso, sem nenhuma experiência gerencial, ele foi colocado no comando da seleção para a Copa do Mundo de 2010. É por isso que existe uma Igreja de Maradona em Buenos Aires. É por isso que seu pênis falso foi exibido em um museu em Buenos Aires como uma relíquia religiosa – e posteriormente roubado em uma turnê nacional.
Ele perdeu peso. Ele ganhou forma. Ele voltou. Ele marcou no primeiro jogo da Argentina na Copa do Mundo de 94, contra a Grécia. Após a segunda, contra a Nigéria, ele foi selecionado para um teste de drogas aleatório. Ele falhou. Em casa, havia um clima semelhante ao de tristeza. Buenos Aires não tinha visto nada parecido desde o luto por Perón. Como que para confirmar o vínculo, a confirmação de que a amostra B também era positiva veio no dia 1º de julho, 20º aniversário da morte de Perón.
Ele voltou por mais algumas temporadas inconstantes, se enfureceu contra as conspirações que o assediavam e falhou em outro teste de drogas, mas 1994 foi o verdadeiro fim, o fim não apenas dele como um grande futebol, mas de um grande emblema da Argentina.
Publicado originalmente no jornal The Guardian.
Traduzido por Olímpio Cruz Neto